O cancelamento do cancelamento

Podíamos usar a visibilidade da internet como trincheira para uma bela guerrilha a favor do bem, mas parece que o mal é mais sedutor

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  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 6 de fevereiro de 2024 às 05:00

Vez por outra, entro nas redes sociais e vejo uma notícia sobre alguém que foi cancelado, ou vaiado.

Eu, realmente, não gosto de fofoca, mas às vezes é inevitável dar uma pequena pesquisada, por curiosidade.

Quanto às vaias, geralmente, são vídeos onde 3, 5, 9 pessoas se reúnem num aeroporto, ou entrada de evento, para vaiar alguma pessoa famosa. A pessoa pode ser aplaudida por bilhões, ganhar prêmios, lançar trabalhos de qualidade, criar políticas louváveis, mas o foco, naquele momento, é para a meia dúzia de 3 ou 4 pessoas que resolveram perder seu tempo num ato insignificante e que em nada vai mudar a ordem das coisas.

Insignificante até o momento em que a imprensa resolve destacar a ação. Há aquele súbito destaque que preenche as redes com a informação efêmera, passageira e insignificante, em seguida. A partir de então, a inutilidade se amplia por estes instantes, e todos se abraçam no abismo da insignificância. Quem segue alimentando isso se joga junto neste poço sem fundo, também. Até a próxima fofoca ou notícia histérica e superdimensionada.

Já em relação aos cancelamentos, não sei quem é pior. A imprensa, que busca sofregamente uma notícia sensacionalista para ser lida, ou as pessoas que alimentam esse dragão de asa quebrada que só cospe fumaça fria.

A última, agora, foi em relação a Kafka.

Aviso de antemão que não vale perder seu tempo, como eu perdi, pesquisando sobre o caso, por conta do depoimento de Max Brod sobre a vida sexual do escritor tcheco. Pessoas falaram mal dele nas redes sociais, grandes bastiões da moral, num tal cancelamento que só não é mais preocupante que o pelo encravado da minha barba.

Não houve passeata em frente ao seu museu em Praga. Derrubada de sua incrível estátua móvel. Nem quebra-quebra em livrarias, queimando sua obra. Nenhum site parou de vender seus livros (sempre entre os mais vendidos). Tudo ainda é tal e qual, com uma pequena moquequinha se debatendo em nichos de escassa visibilidade, até a imprensa acender um fósforo a lhe dar segundos luz; para em seguida queimar seus próprios dedos por isso.

De repente, a vida íntima sexual de uma pessoa que morreu há 100 anos, vivendo em condições das mais instáveis, numa outra realidade psicossocial e política sequer pesquisada, considerada e relativizada, vira motivo para ser notícia em alguns dos principais meios de comunicação. A monumental obra dela não se espalha por manchetes, despertando a população para esse incrível universo, mas “todo mundo quer saber com quem você se deita”, já dizia Caetano. “Nada pode prosperar”, assim.

Parece, por um lado, que não é autorizado a grandes criadores que estes tenham uma vida comum, com suas falhas, erros, vacilos e deslizes. E como se a própria obra já não fosse um reflexo desta vida instável, posto que a experiência, a frustração e o erro são matérias primordiais da criação. Mais curioso é parecer que todos nós não tenhamos nossos erros, e não nos relacionemos com pessoas das mais diversas e defeituosas como nós, em diversas instâncias sociais, íntimas e familiares.

As redes sociais poderiam ser uma potente ferramenta de divulgação e promoção do que é bom.

Vi, recentemente, Juliano Holanda, grande músico e compositor pernambucano, divulgando dois frevos inéditos seus e um de Siba. Na mesma pegada, uma orquestra de frevos gravou um disco homenageando Moraes Moreira. E, mesmo sendo notícias diretamente ligadas a carnaval, pouco ou quase nada se falou sobre isso tudo.

Revejo sempre o vídeo de Chico se pocando de rir falando sobre os comentários de internet. Ele, assustado, percebe que ao contrário da vida concreta, onde o artista é amado, nas redes ele é odiado, xingado, ofendido. Ele ri e diz que não há o que fazer. Odiar quem odeia?

Podíamos usar a visibilidade da internet como trincheira para uma bela guerrilha a favor do bem, mas parece que o mal é mais sedutor. Poderíamos cancelar a reverberação dos equívocos e ódios apenas disseminando, mais vezes, o bem, o bom e o belo.

Antes de nós mesmos querermos cancelar o que achamos errado, podíamos buscar ações positivas contra isso. Mas quantos compartilhamentos positivos, divulgadores e incentivadores de outrem vemos circularem pelas redes sociais de nossos amigos e conhecidos? Eu mesmo já me peguei com o sentimento mesquinho de “se tal pessoa não me divulga, também não divulgo ela”, como se pra fazer o bem se precisasse de recompensa e reciprocidade.

E nós sequer olhamos nossa mesquinharias e rudezas.

Provavelmente, se eu me sentar numa mesa de bar para falar sobre Kafka, hoje, haverá dois tipos de gente. Uma que ao citar o nome do autor vai emendar: “você viu que ele foi cancelado?”. Outra que vai emendar comentando sobre alguma obra que leu, que quer ler, ou filme ou autor que sofreu influência do gênio tcheco, e por aí vai...

Você é parte da engrenagem, e com qual das duas pessoas lhe interessa conversar diz muito sobre você; acredite.