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Gabriel Moura
Publicado em 12 de maio de 2024 às 05:00
“Eu vou contar uma história, uma história de espantar”, epigrafou assim Jorge Amado em ‘Terras do Sem Fim’, e cito-o para descrever um causo protagonizado por rapazes vindos das terras do além-mar. A disputa pelo controle das terras de Ilhéus e adjacências é um resumo compartilhado por ambas as tramas, mas há uma diferença fundamental – além da nacionalidade dos personagens: Badaró, Silveira e Firmo ambicionavam a mata de Sequeiro Grande; já Magali e seus anglosaxões desejavam controlar toda a Bahia. >
Em 22 de novembro de 1907, um grupo de nove homens desembarcou no porto de Ilhéus. Oito deles eram gringos, num misto de canandenses, estadunidenses, irladenses e britânicos, liderados pelo brasileiro Sebastião de vulgo Magali.>
Eles portavam grandes malas [lá ele] e diziam ser artistas de circo para justificar o excesso de bagagem. A presumida lorota não colou entre os ilheenses, que notaram a falta de veia circense dos forasteiros, que, por sua vez, nem faziam questão de propagandear o prometido espetáculo.>
Suspeitas à parte, a suposta trupe hospedou-se na Fazenda do Pimenta e convenceu um comerciante a repassar três cavalos com pagamento fiado, garantindo que no dia 25 honrariam a dívida. >
No dia prometido, nada do dinheiro. Incomodado, o vendedor foi até o subdelegado e dedurou a corja. Retornando a fazenda, foi recebido a balas pelo grupo, que rumou ao centro da cidade. Quando lá chegaram, dispararam à esmo, com a desconfiança da população sanada pelo anúncio de Magali que se misturava ao bangue-bangue: “eis o circo”.>
A empreitada do revolucionário pegou de surpresa as forças de segurança da Bahia, mas não deveria, pois Magali nunca fizera questão de esconder seus planos. Meses antes, o brasileiro circulou pelo Atlântico Norte em busca de recrutas e financiamento para sua trama golpista. >
O sem-noção chegou a conceder entrevista ao jornal The Sun, de New York, onde reforçou o estereótipo do Brasil como país incivilizado. “Ali é um dos jardins do mundo. Mas todas as belezas da sua natureza estão às escuras devido à anarquia. Afora os pequenos distritos, não há governo que valha este nome em todo país", bradou ao periódico, que descreveu o aventureiro como “moreno, de estatura mediana e falante de inglês”.>
Vomitando delírios e birutezas, ele confidenciou o objetivo de atrair apoio de militares dos EUA. Nesta fala, até o The Sun, conhecido por seu tom sensacionalista, recorreu à sensatez. "Os Estados Unidos não deixarão sair do seu território nenhum soldado para uma expedição armada contra uma república amiga”, esclareceu.>
Magali também telegrafou a bancos, magnatas e até a Embaixada Brasileira uma mensagem detalhando um plano de tomar posse da província de Minas Gerais na base da bala. “Eles não têm condições de me deter. Apenas 80 soldados defendem o palácio do governador em Belo Horizonte”, garantia o megalomaníaco.>
Completando o embornal de tolices, Magali alertou que os voluntários deveriam “investir” 150 dólares para a compra de materiais, armas e passagens, pois nenhum capitalista teria topado financiar a aventura.>
Oito gringos aceitaram o convite e embarcaram para Salvador, de onde baldearam rumo ao vilarejo de Ilhéus: Cecil Bore, inglês e ex-tenente exercito blanco na guerra civil do Uruguai; Hubert Wilson e George Kincaid, irlandeses, da Polícia Montada do Canadá; Samuel R Parker, engenheiro eletricista; Herbert Pfannebekcer e George H. Vice, estadunidenses; George Gordon, escocês. Todos entre 21 e 30 anos, à exceção de Norl Philp Davies Gruthorp, sexagenário, major da reserva do exército britânico.>
Eram seis praças de plantão na delegacia de Ilhéus às 11h do dia 25 de novembro de 1907 quando nove homens usando fardas do exército dos Estados Unidos começaram a atirar pela praça da cidade, que ainda não era a “Capital do Cacau”. A desvantagem numérica das forças do estado foi compensada pelo apoio de populares, que sacaram as carabinas do armário e foram até as janelas descer chumbo no bando.>
Um policial e o major Davies morreram durante a troca de tiros. Percebendo estar encurralado, Magali ordenou retirada e os sete restantes – um dos estrangeiros fora capturado – entranharam-se pela mata.>
A flibustaria repercutiu internacionalmente, obrigando o Ministro do Exterior do Brasil a telegrafar a todas delegações brasileiras no estrangeiro colocando panos quentes na situação. Na mensagem, o político dizia tratar-se de um “mero caso policial numa pequena cidade próxima a São Salvador.”>
"O nevropata [Magali], se não for vítima de bugres [termo pejorativo para indígena] ou onças, será internado no Hospício da Saudade", previu o ministro no comunicado.>
Enquanto o burocrata gastava o português, a população do Sul da Bahia gastava pólvora. Armados com escopetas e facões, expedicionaram pela floresta, capturando os invasores nas cercanias do distrito de Almada.>
No caminho de volta a Ilhéus, a populares tentaram linchar o bando, mas a polícia protegeu os criminosos a fim de colher depoimentos. No xilindró, Magali abriu o bico. >
Descobriu-se que o nome dele era Sebastião Magalhães, gaúcho de 27 anos, que serviu ao exército brasileiro. Segundo reportagem do Jornal do Brasil, Magali não só garantiu pertencer a uma “sociedade secreta”, como revelou que o papo de Minas Gerais era uma mera distração: o objetivo era conquistar Bahia, iniciando a empreitada pelo Sul e, em seguida, marchar ao Norte.>
Tempos depois, o jornal inglês Daily News não só corroborou a versão de Magali como apontou um grupo de capitalistas ingleses, americanos e canadenses como reais líderes e financiadores do movimento. >
O destino do gaúcho tresloucado é incerto, mas não há lápides em Ilhéus com o nome "Sebastião Magalhães".>
Já o fundamental livro “História da Bahia”, de Luis Henrique Dias Tavares, ressalta que do “legado de Magali” pouco sobrou, apenas piadas contadas em mesa de bar e um manifesto escrito em mau português no qual o gaúcho declarava que o objetivo do ataque era "estabelecer um governo estadual honesto".>