Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Gil Vicente Tavares
Publicado em 16 de outubro de 2025 às 05:00
Final do século passado. Minha mãe, Katia, e meu padrasto, João, estavam em Valença, viajando de férias. Estavam decididos a ir a Morro de São Paulo, terra da nossa família materna. De repente, no porto, minha mãe ouviu alguém falar de uma lancha que estava saindo para Boipeba. Ela comentou a João que sempre ouvira falar de lá, mas nunca havia ido. Decidiram mudar a rota. Minha mãe sempre foi movida por afetos, e essa viagem afetou toda sua vida futura. >
A paixão à primeira vista resultou primeiramente numa casa alugada na vila de Boipeba, e um terreno comprado em Moreré (e depois, tantas coisas mais, sua vida quase toda ligada àquela ilha). Resolvi passar quase um mês na casa alugada, durante minhas férias escolares, junto com meu primo Leo, além de algumas escapadas a pé para Moreré, onde Paulo e sua família nos recebiam com todo carinho, já, desde aquela época.>
O violão ainda era uma novidade, em minha adolescência, mas já sabia ler cifra minimamente, e era meu companheiro de todas as horas. Foram férias que ajudaram a deformar o adolescente a moldar o adulto que viria a ser, tempos depois.>
Pois numa dessas idas e vindas com violão na mão, praia pra lá, moqueca em Didize pra cá, me bati com um senhor diferente. Jeitinho de mestre dos magos, fala mansa, fumando cachimbo, casa com bandeiras orientais (se não me engano), casa simples, charmosa, preservando mais o verde que o conforto classe média.>
Minha memória, geralmente boa, não me ajuda a lembrar exatamente como foi, mas sei que fui chamado a levar o violão à sua casa. Fomos eu e Leo. Sem educação, algo típico de um adolescente, e sem dinheiro, idem, fomos com uma mão na frente e outra segurando o violão ao lado. O casal, simpaticíssimo, nos ofereceu bebida. Prontamente, descia uma cachaça que ele havia ganhado em tal longínqua, um rum que ele trouxe de Cuba, um peixe que Niara, sua esposa, havia aprendido a fazer no Xingu.>
Comecei a desconfiar que ali havia coisa. Ele não era um cidadão comum.>
Animado, ele chegou com dois volumes de canções de seresta, todas cifradas, e umas percussões artesanais, das mais diferentes origens. Como de costume em minha infância, adolescência e juventude, passei a ir todas as noites ficar com os velhos, e negligenciar os jovens.>
As noites passaram a ser tardes, ou manhãs. Eu sentava ao seu lado, ele preparava seu cachimbo, e começava a falar, numa lentidão quase que em rotação para trás, sobre suas experiências, suas ideias, viagens, amizades, histórias.>
Ele falava com o mesmo tom, importância e detalhe sobre sua passagem pela FUNAI e uma confusão no carnaval de Salvador. De sua relação com o peixeiro da ilha, e de sua amizade com Gilberto Gil. Era da mesma importância ele ser nativo de uma terra que ele dizia ser de pistoleiros, quanto ser irmão de Ordep Serra. Seu jeito manso, quase monocórdio, botava em pé de igualdade a qualidade de sua percussão me acompanhando em Calix Bento e seu trabalho com os povos indígenas do Brasil, tendo sido a pessoa a designá-los a cargos administrativos do Parque Indígena do Xingu.>
Era tudo igual, pra ele. Sinceramente igual. No que ele estava totalmente certo. >
Foi um aprendizado pra mim. Aprendizado na convivência, na observância, na ampliação da visão de mundo de um homem que ia de uma palestra em Tóquio a um café com a família do pedreiro na mesma toada, olhando tudo sempre com afeto. Aprendi mais com o coração do que a razão.>
Soube, no dia 2 de outubro, da passagem de Olympio Serra numa postagem de sua sobrinha, minha parceira numa valsa (sobre afeto), Marina Martinelli. Senti uma tristeza, claro, mas a notícia parecia me chegar com sua voz, e seu desprezo pelas emoções despropositadas. Nada parecia importar mais em sua vida do que acertar a levada correta em seu tambor para uma canção que eu tentava tocar ao violão. Era a força do momento e das pequenas coisas que iluminavam seu olhar. Talvez não fosse a morte, essa coisa imensa, que pudesse lhe tirar de seu estado de paz. Ele desde sempre parecia ter vencido a morte, talvez mesmo ao se deixar levar por ela.>
Minha paixão pelos mais velhos botou em meu caminho outro mestre. Provocado por Maviael Melo a quem chamar para dividir uma mesa comigo na Festa Literária de Uauá, falando sobre João Ubaldo Ribeiro, chutei Hermano Pena. Ambicioso, chutei alto, tentei contato, e não é que ele aceitou?>
Dividir uma mesa com ele, eu falando sobre minha adaptação para o teatro, e ele para o cinema, da obra Sargento Getúlio, só não foi mais incrível que as cervejas tomadas na praça. Conversas e mais conversas, lições e mais lições, histórias e mais histórias. Hermano ia mostrando o tamanho de sua importância sempre falando da importância dos outros, cheio de afeto por tudo. Quanto mais ele se colocava como coadjuvante e espectador privilegiado, mais eu me sentia um espectador privilegiado de um grande homem.>
Foram tantos nomes, que não lembraria jamais de todos que ele falou, e se minha memória falhou, a dele, não. Num gesto de profunda grandeza, beleza e sensibilidade, recebi dele, apenas dele, uma mensagem falando de Olympio, no dia seguinte à notícia que eu li. Eu odiaria que fizessem comigo o que ora faço com ele, mas reproduzo as palavras de Hermano, aqui, porque me tocaram de um jeito profundo: “Gil, apesar de sentir o peso do vazio com a passagem do nosso Olympio, sinto o calor de luz e humanidade que ele irradiou. Um forte abraço meu amigo.” Prontamente me vieram sensações bonitas de nós dois falando sobre o nosso Olympio.>
Respondi a ele, emocionado, mas segui publicamente em silêncio. Sequer tive a gentileza, educação e sensibilidade de mandar uma mensagem a Niara. Parecia que eu havia me colocado num limbo, sem encontrar o prumo do meu coração para aquele momento. Até que voltando de uma curta viagem, passeio de afetos, comecei a pensar em quais outras canções da nossa música poderiam ser também o hino brasileiro, para além de Bye Bye Brasil, que havia ouvido no carro. Lembrei de Um sonho, de Gilberto Gil, e botei-a pra tocar. Já no meio da canção, comecei a chorar. Olympio me veio como personagem difuso daquela canção, e um misto de alegria e tristeza me emocionavam naquela representação tão pura e brasileira da música de meu xará.>
Enxuguei as lágrimas, e continuei em silêncio. Até agora. Olympio me ensinou, muito mais do que antropologias, sociologias e culturas, algo que deveria reger isso tudo, e que é a pedra de toque da criação humana: o afeto. E me ensinou que o afeto não tem tempo, espaço, lugar. >
Ele sumiu de minha vida por anos, mas apareceu na mesa com Hermano. Outro que nunca mais vi, depois das noites mágicas de Uauá, mas que me voltou pelo afeto, que seguirá nos levando a Olympio, agora e sempre. >
É uma pena não podermos dar atenção a toda a rede de afetos que conseguimos criar. Mas é, ao mesmo tempo, para mim muito bonito saber que se não damos conta é porque essa rede é grande, não cabe num espaço e tempo definido, e que ela se perpetua para além de Boipeba - que não é mais a mesma depois da partida de minha mãe, para além de Uauá, que não será a mesma sem Hermano, e para além da partida física de Olympio Serra.>
Achei por bem fechar esse texto com uma das mensagens que respondi a Hermano, também citando outro mestre e seus afetos:>
“Certa vez, Tuzé de Abreu me disse uma coisa muito bonita, falando de meu pai [Ildásio Tavares]. Que as pessoas queridas são como partículas da gente, e quando se vão, vão essas partículas, até que uma hora nós vamos, também.”>