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Que tal acabar com o nosso São João?

Eu não pensava que fosse voltar ao assunto, mas como a fogueira da discussão sempre é reacendida, decidi-me por mais uma variação sobre o tema.

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 24 de junho de 2024 às 11:47

O São João é a festa que mais amo e a que mais une nosso Nordeste imaginário, com suas músicas, bandeirolas, fogueiras, culinária e quadrilhas.

Para as cidades do interior, é também a culminância do ano, em seu calendário, na maioria das vezes. E é onde as secretarias de cultura e turismo investem praticamente todo seu recurso do orçamento anual.

Fora do período junino, boa parte das cidades do interior da Bahia fica sem opções turísticas, culturais e artísticas. O atrativo dos municípios se torna apenas a sua natureza. Rios, cachoeiras, morros, caatinga, praia. Ou algum mal preservado centro histórico e/ou suas ruínas

Todo ano, boa parte das prefeituras baianas - seguindo um padrão do Nordeste - ostentam como grande ação pública sua grade de atrações, mostrando o vultoso investimento em se trazer sertanejo, pagode e arrocha, dentre outros gêneros, através de grandes nomes e cachês até milionários, para a programação junina.

Esse clima de Festival de Verão que as prefeituras criam no interior gera frisson, elogios, procuras por curtas hospedagens e até disputas de quem consegue trazer a atração mais famosa e mais cara. E pouco importa que custe por volta de um milhão de reais, aos cofres públicos, uma apresentação de menos de duas horas numa praça da cidade. pelo contrário, no interior, onde muitos ostentam sua hylux à prestação, a ostentação rememora os tempos dos coronéis e suas gastanças como demonstração de poder.

Prontamente, grandes representantes da música tradicional junina, e admiradores dessa tradição, disparam suas críticas à falta de xote, xaxado, baião, galope, com suas sanfonas, triângulos, zabumbas, tudo isso sendo engolido pelos teclados, baterias com bombo reto, e canções que em nada lembram o repertório conhecido dos forrós e seus cantadores. Há realmente uma desfiguração da festa. Mas não é botando artista contra artista, estilo contra estilo, que as coisas podem apontar para melhores dias. Tudo passa pela gestão municipal.

Uma prefeitura existe para gerir a cidade o ano inteiro. Cuidar diariamente de seu asfalto, saúde, educação, infra-estrutura, impostos e finanças, preservação e manutenção. Assim como sua cultura, sua arte, seu turismo.

Infelizmente, esses três últimos itens não são vistos assim. A concentração de orçamento em efemérides, notadamente São João, escancara a falta de uma política efetiva para os setores da arte, da cultura e do turismo.

Se eu tivesse o poder de pensar e estruturar políticas para a Bahia, eu teria como um de meus projetos-eixo uma política direta com os municípios.

O Minc e a Secult-BA deveriam criar programas de financiamento assistido onde cada município tivesse ao menos seu teatro municipal, um museu, ao menos um corpo artístico estável, e editais e programas municipais de apoio a artistas locais. A cidade que topasse entrar nesse programa, receberia recursos, assessoria e consultoria garantidas pelo Estado.

O teatro municipal deveria ser como um centro cultural, com dois palcos, um grande e um pequeno, experimental. Deveria contar com salas de aula e ensaio, centro técnico e, se possível, alojamentos anexos, permitindo estrutura para circulação de espetáculos entre as cidades, numa rede coordenada por uma parceria transversal também entre o Minc e a Secult-BA..

O museu deveria contar com algum acervo especial, oriundo da própria cidade, de sua história, tradição, arte, cultura, folclore, ou de artistas importantes que lá nasceram, por lá passaram ou por lá morreram. E uma galeria dedicada a receber exposições temporárias, que poderiam vir de outras regiões e municípios próximos, ou até mesmo de convênios com grandes museus da capital e de outros estados.

O corpo estável - poderia haver mais de um - seria uma companhia de teatro ou dança, uma orquestra, mesmo que de câmara, até mesmo um quinteto, por exemplo. O corpo estável teria um centro de formação, montagens e repertório renovado anualmente, com apresentações ao longo do ano. Tudo isso como ações continuadas, e com cronograma para 6 anos, por exemplo, renovado automaticamente no terceiro ano, após relatório das ações programadas (penso 6 para permanecer na gestão seguinte e não haver risco de algum prefeito boicotar o programa e os artistas terem tempo de solidificar sua proposta).

Quanto aos programas e editais, me parece meio óbvio e carece de explicação. Acho editais estaduais e federais verdadeiros frankensteins, pois jamais contemplam todas as cidades, e jamais têm comissões que consigam dar conta de pensar um país ou um Estado do tamanho de um país como a Bahia; por mais competentes que sejam. Deveria ser responsabilidade das prefeituras mapear e criar programas que contemplassem artistas e projetos locais.

Os centros de cultura do Estado, presentes nalgumas regiões na Bahia, poderiam inclusive servir como subsecretarias, de onde partissem diagnósticos, iniciativas e diálogos com a região para melhor coordenação e distribuição de recursos e aportes.

À primeira vista, pensar em descentralizar recursos poderia parecer uma tentativa de enfraquecer a festa de São João de algumas cidades. Porém, o que critico, aqui, refere-se ao aporte financeiro para um evento de três ou quatro dias, vindo do orçamento público, com cachês imorais de até um milhão de reais. Não é enfraquecer a festa, mas acabar com esse São João.

Não questiono o quanto o artista cobra. Questiono o que uma prefeitura decide pagar, quando não investe ao longo do ano na diversidade e numa arte que seja cotidiana e faça parte do dia a dia da cidade. Com um milhão gasto numa apresentação de menos de duas horas, poderia-se manter anualmente duas companhias, uma de dança, e uma de teatro, numa cidade. Ninguém precisa forçar muito os neurônios para imaginar qual das duas ações seria mais estruturante para um município.

Pode-se fazer uma bela festa com boas atrações que cobrem bem menos que as grandes estrelas do sertanejo, do arrocha e do pagode, por exemplo. Na contramão, poderiam argumentar que as estrelas são convidadas porque o povo gosta. Mas se o povo gosta, o povo paga pra ver, pode ter certeza. E a função de uma prefeitura não é fazer gastos astronômicos para suprir demandas de gosto; e sim cumprir com os princípios constitucionais.

Uma cidade com programação artística todos os finais de semana iria, com o tempo, mudar a cultura local com toda certeza. Crianças que crescessem com essas oportunidades, teriam outra visão de mundo mais ampla e diversa em sua formação.

E o comércio local? Os setores de mão de obra seriam mais solicitados, gerando empregos, de eletricista a bilheteiro, de costura a marcenaria, e aumentaria a venda de materiais como tecidos, madeira e construção para as produções locais e vindas de fora.

O setor de serviços seria muito mais impulsionado. Com o tempo, não só a movimentação do setor de alimentos aumentaria, como o setor de hotelaria também. Em vez de receber uma multidão por dois, três dias, focada apenas na festa, e em consumir a festa, sem movimentar o comércio e serviços locais, pousadas e hotéis teriam curiosos vindos de várias partes ver exposições, espetáculos, concertos.

Não discuto gosto e qualidade, mas penso que com uma programação diversa, de qualidade e cotidiana, provavelmente o foco da população mudasse da espera gigante de, apenas uma vez por ano, ver seu ídolo de graça na praça. Os ídolos talvez até mudassem.

Provavelmente, sem a pretensão de mega festival, sendo uma festa dentre tantos eventos a apresentações, o São João ganhasse a dimensão que lhe cabe e lhe é mais bela, com seus trios nordestinos, seus cantadores, suas barraquinhas, disputas de quadrilhas e fogueiras nas portas.

Orçamento, há. O que falta é visão e vontade política. Falta o interesse em se fazer uma real política edificante e estruturante para a população local.

Tenho certeza que a arte, a cultura e o turismo fariam dessas cidades muito mais do que o palco de uma festa perdulária e fugaz.