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Gil Vicente Tavares
Publicado em 29 de outubro de 2025 às 20:19
Certa feita, eu estava de bobeira, terminando de ver algo no youtube, quando apareceu para mim alguma chamada tipo: “assaltante tenta levar moto e se dá mal”. Num daqueles gestos lobotomizados que a internet nos causa, cliquei. Era algum vídeo em que um criminoso tentava realizar algum assalto a mão armada, e acabava alvejado pela arma de alguém que reagiu ao crime. Instintivamente, me subiu aquela ideia na cabeça: “toma, vagabundo”. Quando me dei conta, estava já vendo uma dezena de vídeos de pessoas sendo mortas por outras pessoas. >
Prontamente, saindo do surto sanguinário, e recobrando alguma lucidez, pensei o quanto a violência punitiva nos atrai. Comecei a lembrar do quanto amamos filmes em que um justiceiro, por sede de vingança contra alguma injustiça e/ou crime feito contra sua pessoa ou seu país, sai matando todo mundo.>
Rambo é um caso clássico. Os EUA perderam a guerra do Vietnã. É uma mácula na história dos estadunidenses, um desastre militar que expôs as fraquezas do país, mas também sua força, com os movimentos contra a guerra que acabaram por se disseminar numa grande onda global de paz e amor.>
Pouco importa isso tudo. Dá um imenso prazer ver Sylvester Stallone matando uma cacetada de vietcongues. Ele, sozinho, fazendo ir pelos ares aqueles seres desumanizados, transformados apenas em inimigos a serem abatidos. O prazer do filme independe de alguma vitória na guerra, o que conta ali é acumular o maior número de mortos, empilhados como troféus de caça no meio da floresta.>
Nosso viralatismo cultural, aliado a uma contínua deseducação estética e ética, nos legaram décadas de filmes em que o melhor são sempre as mortes. Sejam quais foram os inimigos. Amamos ver cabeças explodindo, rajadas de metralhadoras que derrubam 10, 15 de vez, o herói quase vencido conseguindo com uma pequena faca matar 15 homens fortemente armados - em coreografias em que o inimigo fica muitas vezes se balançando esperando apanhar. Pode ser Busca implacável 27, ou Vingadores 32, ou Velozes e furiosos 183, ou aqueles filmes de guerra em que os EUA vencem sozinho o nazismo, o fascismo, extraterrestres ou fantasiosos espiões soviéticos, sempre haverá franquias que vemos sem nos incomodarmos com o acúmulo desenfreado de mortos, desumanizados como meros alvos.>
Muito se discutiu quando da comoção mundial com aquela foto da criança morta, de camisa vermelha, numa praia, fruto de uma crise migratória no Oriente Médio. Dias e dias com balsas, barcos, botes afundando e corpos pra todo lado não comoveram tanto quanto aquele menino, e parece realmente que milhares de mortos em Gaza comovem bem menos que uma criança sozinha estendida na areia.>
Esquece-se que, como dizia Christian Boltanski, citado no belo filme de Marcelo Masagão Nós que aqui estamos por vós esperamos, “em uma guerra, não se matam milhares de pessoas. Mata-se alguém que adora espaguete, outro que é gay, outro que tem uma namorada. Uma acumulação de pequenas memórias…”. Não sei bem se é esquecimento, ou apenas uma desumanização dessensibilizada que move o ódio ao outro.>
No Brasil adoecido pela extrema direita, essa gente só admite duas hipóteses de pessoas. Uma, é a que vibra com as mortes, como o sórdido deputado mineiro mais votado, que frente ao questionamento sobre a inutilidade de se matar 60 porque no outro dia aparecem 120, respondeu que é só matar os outros 120.>
É uma gente que ataca os direitos humanos, “esterco da vagabundagem”, até que seu mito e criminosos do 8 de janeiro, punidos, estejam em situação que eles julgam humilhante. De resto, é só “ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina”, como diz Caetano em sua certeira e retumbante parceria com Gilberto Gil, Haiti.>
O outro tipo de pessoa, pra essa gente, é o tal esquerdista. Acham que condenar uma chacina é ter peninha de bandido: “tá com pena, leva pra casa”. Acham que quem condena centenas de mortos numa matança inútil é defensor de bandido. Não há conversa, nem relativismo; a extrema direita veio para interditar o diálogo e a sensatez.>
Vi uma entrevista de Brizola de 1989, em que ele falava sobre as matanças inúteis, enquanto a solução estaria em educação, saúde, cultura, esporte, diminuição da desigualdade, citando os CIEPS. Quem não conhece, dá uma pesquisada; projeto lindo de nosso ídolo Darcy Ribeiro.>
De 1989 para cá, são 36 anos. Quando falamos que a solução não é a seguida mortandade, e que tudo passa por ações sociais e humanísticas, sempre se argumenta que isso é solução a longo prazo. A pergunta que essa gente faz, em seguida, é: e enquanto se realizam ações sociais e humanísticas, vai deixar vagabundo se criar e a polícia deixar de fazer seu trabalho?>
Bem, há mais de 40 anos a polícia vem fazendo seu trabalho, e o problema só parece crescer. E nesses 40 anos nada de efetivo, continuado e estruturante foi feito social, cultural, educacional e economicamente falando. É esperar o que para começar a se agir na raiz do problema? O contra-argumento parece uma cortina de fumaça para legitimar a sede de vingança e as pilhas de cadáveres “quase todos pretos, ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres”.>
Pelo último cálculo, são 124 mortos na chacina promovida pela polícia do Rio de Janeiro. 95% de civis, criminosos, ou não. Segundo fala do governador do Rio, “de vítimas lá só tivemos os policiais”. Juntando a população do Complexo da Penha e do Complexo do Alemão, são quase 200.000 pessoas que vivem por lá. Os mortos não são sequer 0,1% da população. Vítimas ou algozes, deixam centenas de filhos, netas, amigos, namoradas, esposas, irmãos, primas, pais que não têm acesso ao básico a que um cidadão tem direito (está lá na constituição, não é papo de esquerdista, caros direitistas ao extremo).>
Sabem o rei do cangaço? Pois é, virou o terror do sertão e entrou para o banditismo por conta do sentimento de vingança pela morte do pai. Alguém viu o filme Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles e Katia Lund? Lá, um menino fala que ele sabe que só deve viver até uns 26 anos, mas ele prefere assim: ter o tênis que ele sonha, enveredar pelo crime e ter o que nossa sociedade do consumo tanto nos provoca. Muito mais até do que pensar num diploma, emprego, ele quer um iphone e a sensação de poder com um fuzil, dinheiro, mulheres, farras, música alta no paredão.>
Se você acha que morreu foi pouca gente, e vê essas pessoas como cadáveres adiados que procriam (hein, Pessoa?), eles, mais ainda, apertam o gatilho por qualquer coisa. Seguirão matando, se multiplicando, e vendo a miséria ao seu redor como algo a ser vencido da única maneira que o mundo parece lhes dar como solução imediata: o tráfico, o crime organizado. Quando não isso, talvez apenas a milícia como alternativa. Sim, a milícia empregada e condecorada por família de ex-presidente.>
De resto, viveremos nesse país adoecido pela extrema direita que acha que lutar por direitos humanos e diminuir a desigualdade do país são coisas de esquerdista. E que vibra com chacinas, achando que assim o tráfico paga por seus crimes. Mas apenas o traficante do baixo clero, preto e favelado, né? Por que como essa galera tem acesso a tantas armas de alto calibre e tecnologia? De onde vem e pra onde vai toda droga que eles vendem? Quem realmente faz fortuna com o tráfico? Quem consome toda essa droga, patrocinando assim este mercado paralelo? >
Os adoradores da execução sumária não estão interessados nisso. Apenas sonham com a chegada de um Rambo na favela, fazendo voar pelos ares pretos, em vez de orientais, sublimando uma guerra que, desde o início, está perdida; morram dez, cem ou mil.>
Tanto faz. Sempre serão poucos os mortos, e sempre será nenhuma a hipótese de solução do problema.>
E talvez o projeto seja esse, mesmo. Poderosos intocados, e pobres enterrados.>