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Uauá significa pirilampo, vaga-lume, em linguagem indígena local. Assim como os pequenos seres fluorescentes das águas de Boipeba, não precisam de muito para brilhar
Gil Vicente Tavares
Publicado em 13 de novembro de 2023 às 05:00
Lembro do dia em que descobri os pequenos seres fluorescentes, ao caminhar com os pés no rio-quase-mar, à noite, em Boipeba.
Faz uns 30 anos.
Seres que estão quietos no rio, mas basta uma ondinha, um movimento nas águas, para mostrar seu brilho, sem precisar aderir às estéticas da moda, ou se empoleirar em projetos de poder, ou pagar 50 para o outro não ganhar 20. Brilham porque são postos a dançar no seu espaço e tempo. Sem esforço, sem mesquinharias, estratégias de marketing.
Brilham porque brilham.
E só assim deveria ser, sempre.
Depois da frustrada tentativa de ir à Festa Literária de Uauá, ano passado, finalmente adentrei semana passada este território que sempre me atraiu tanto. Em parte por ser terra de minha tia Dorinha, em parte pelo restaurante da irmã dela, o Restaurante Uauá, e também pela minha paixão por comer bode. Mas também meu interesse pela região, por Canudos, ali tão perto, e, acima de tudo, a vontade de conhecer mais um povo, mais um jeito, outras tradições, modos, culturas.
Garanto-lhes que não há cidade na Bahia (e falo Bahia por ser meu Estado e meu estado) onde não haja alguma tradição, paisagem, trilha, história. Mas, sobretudo, a força de seu povo; patrimônio maior dessa miscigenação incrível que foi a formação do nosso país.
A paisagem cansa, depois de um tempo. Não é por ela.
A cidade não tem nada demais. Nem a igreja da praça principal se destaca. Não há grandes casarões coloniais, e as alternativas da natureza ficam à margem de Uauá.
Por ser uma festa literária, em si, também não. Há hoje mais de 50 Bahia afora, e, inclusive, parece que se tornou uma alternativa pouco dispendiosa, por se tratar de mesas, livros e estruturas simples que colocam cidades e prefeituras como porretas, lançando mão de um baixo orçamento para se superdimensionar as ações culturais no município.
Ao fim e ao cabo, é a energia da cidade, de seu povo. E a visão de Mércia Ferreira, Lorena Ribeiro, Maviael Melo e Ellen Ferreira, e tantas mais, que levou a Uauá gente da mais diversa, interessante e significativa.
Logo ao chegar, já me senti oprimido pela primeira mesa. Sidney Rocha e Cida Pedrosa fizeram um debate que foi me diminuindo ainda mais, a cada fala. Deu até um cagaço de estar numa mesa logo depois. Sorte minha que havia atirado alto, tentando com Maviael Hermano Penna para compor uma mesa comigo sobre João Ubaldo, e ele topou.
Sorte porque a grandeza da visão e a história de Hermano me diminuíram ainda mais. E seguiram me achatando durante as conversas informais.
A grade de apresentações musicais foi especial, na FLIU. Melhor que muitos, ou que todos os festivais recentes de Salvador, segundo jornalista amigo meu que esteve por lá os 3 dias comigo.
Ao ouvir a apresentação iluminada de Roberto Mendes, ao ver a galera pernambucana toda que por lá estava, ao confirmar o talento de vozes como as de Ana Barroso e Aiace, a junção PeBa de Juliano Holanda com Joana Terra, eu ia me sentindo cada vez mais menor (foi proposital, cara patrulha).
Mas a FLIU, sabendo onde estava, teve a delicadeza e sabedoria de abrir e fechar as apresentações musicais com talentos da terra. E aí a surpresa foi grande. Na hora do bis, nas saideiras, os nativos cantavam canções autorais, todas falando de Uauá, de sua região, de seu povo. Na hora que os grandes sucessos nacionais poderiam ser a chave para um fim grandioso, o povo de Uauá se bastou com sua identidade, suas raízes, sua cultura.
Mas não de forma pedante, vaidosa, arrogante e até bairrista.
Tudo natural, tranquilo, fluido.
O povo daquele sertão é gente que faz mutirões aos finais de semana para ajudar vizinhos, em troca de uma farra. Um povo que tem no sangue o ideal igualitário de Canudos, e que defende ser a essência dele, e não algo exterior, trazido por Conselheiro ou seja quem for. Tudo isso em meio à seca, rios aparentando estar mortos, ou se despedindo do chão, e apenas um grande açude que afundou as duas primeiras cidades de Canudos para sempre.
Em contraste ao rio que flui, e lá não encontra afluentes marcantes, quem flui ali é o povo. Que ouve suas canções, como seu hino extraoficial “Os berros das pedras de Uauá”, de Max Ribeiro, Zecalu, Rennan Mendes e Cláudio Barris. Sim, muitas pedras e muitas canções ao redor, essa sempre sendo tocada, recitada e representada, ao ponto de eu desconfiar um possível cansaço com ela.
Ledo engano. À espera de uma mesa muito bem conduzida por Ricardo Carvalho e Zé Raimundo, sobre a participação dos encourados de Pedrão na independência do Brasil, nosso 2 de Julho, uma miudinha, com chapéu de couro, subiu ao palco. A pequena Maria Heloise, aluna da Escola Padre Gregório, trouxe uma interpretação tão tocante da canção, que tudo se avivou em mim de novo, como na primeira vez que ouvi a canção.
É a insistência de seu povo em resistir às intempéries, ao eterno retorno da seca, da falta de estrutura, da invisibilidade e falta de oportunidades. Que podem vir em eventos como a FLIU.
Eu estava lá, para ver. Claro que muito falta. A reclamação que eu ouvia, de que professores preferiam “comer água na praça” a estar com seus alunos nas mesas, e a falta de estrutura, a energia que traía a organização, precisando correr atrás de geradores, tudo isso deixava evidente as lacunas e mazelas. Atraso de recursos sempre são questões recorrentes, também. Mas é bom que elas apareçam, para evidenciar o que precisa ser feito e corrigido.
Numa breve conversa com o prefeito, provoquei-o dizendo que faltava um festival de teatro, também. Ele me disse que veria, em duas semanas, o governador, e negociaria com ele a construção de um teatro na praça principal, ali, onde estávamos e o evento ocorreu.
Ele me garantiu que chamaria a mim e a Aldri Anunciação, presentes na conversa, para consultar-nos sobre a obra.
Tá, eu sei da fama das falsas promessas de políticos, mas prefiro acreditar que a mudança é possível.
E fiquei ali, pequeno, miúdo, indo mais uma vez a uma cidade pequena ver o quanto eu fico menor, vendo um mundo novo que tinha muito a me oferecer. Pequeno o suficiente para sentir ainda mais vontade de correr pelas veias daquele povo, pelos veios daqueles rios, tudo resistente, pouco, mas forte.
Sentir-se pequeno é ter a real noção do vasto mundo e da vastidão de culturas e pessoas grandes. É instigar na gente a vontade de crescer. Só um tolo, medíocre e invejoso para querer diminuir os outros, achando assim que sua dimensão minúscula fica menos aparente.
É como bombardear uma cidade, e se afogar junto, nas lembranças, com um açude.
Uauá significa pirilampo, vaga-lume, em linguagem indígena local. Assim como os pequenos seres fluorescentes das águas de Boipeba, não precisam de muito para brilhar.
Ao contrário dos seres de Boipeba, brilham naturalmente. Uauá tem seus momentos de escuridão, mas irá sempre voltar a brilhar, e seguir piscando, como um farol no deserto, apontando pra gente toda força, beleza e cultura que ali há.
Obrigado, FLIU. Obrigado, meu povo sertanejo.
(E comi bode todos os dias em quase todas as refeições. E só assim deveria ser.)