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Publicado em 9 de novembro de 2017 às 10:33
- Atualizado há 2 anos
Final do século XVIII. Portugal arrochava na cobrança de impostos relativos à extração do ouro em Minas Gerais. Revoltada com o pagamento do imposto, parte da elite brasileira envolvida na atividade se rebelou contra a coroa portuguesa, em uma resistência que não alcançou o objetivo (a Independência só viria em 1822), mas ficou na história. Era a Inconfidência Mineira, um marco nas lutas pela liberdade no Brasil.>
Agora século XXI, ano 2017. Do ponto de vista da importância histórica dos fatos, a alegoria é claramente exagerada. Mas, guardadas as devidas proporções, nesta semana o jornalismo esportivo teve, também em Minas Gerais, um ato significativo de liberdade.>
A estagiária de Jornalismo Isabelly Morais se tornou a primeira mulher a narrar uma partida de futebol em Minas (a pesquisa é dos colegas da imprensa local). O jogo foi América-MG 2x0 ABC, anteontem, pela Série B do Campeonato Brasileiro. Os símbolos, coincidência ou não, foram perfeitos. Rádio Inconfidência: nome mais sugestivo não há. A data: 7 de novembro, Dia do Radialista (comemorado também no dia 21 de setembro, data extraoficial). >
Surpreendentemente, no contexto nacional, faz tempo que a jornalista Zuleide Ranieri, falecida em 2016, assumiu o microfone da Rádio Mulher, de São Paulo, em 1971, supostamente como pioneira – não encontrei registro antes disso. Recentemente, a carioca Renata Silveira narrou a partida Costa Rica 3x1 Uruguai na Copa do Mundo de 2014, pela Rádio Globo, do Rio de Janeiro. No entanto, como os episódios são isolados, cada conquista nova de espaço é um marco. O de Isabelly foi mais um.>
Há um caminho provavelmente longo a percorrer. Principalmente porque a expectativa por uma voz grave é intrínseca ao rádio, afinal, assim se construiu o veículo ao longo da história (a primeira transmissão no Brasil data de 1922). Este traço cultural, de ouvir o vozeirão que chamamos de “voz de locutor”, não se resume a machismo. Ele é mais antigo que as discussões sobre igualdade de gênero e que a considerável participação das mulheres no futebol brasileiro. Mas, seguramente, foi reforçado por ele. Vale lembrar que, em 1945, um decreto-lei assinado por Getúlio Vargas não permitia às mulheres a prática de desportos “incompatíveis com as condições de sua natureza”, cabendo ao Conselho Nacional dos Desportos (CND) definir o que era compatível com essa tal natureza feminina. Durante a ditadura militar, já na década de 1960, o texto foi mais direto e proibia a prática de lutas e futebol, entre outras modalidades.>
Dentro de todo esse contexto histórico, essa expectativa tradicional pela “voz de locutor” é, provavelmente, o motivo pelo qual o tom agudo de Isabelly causa um estranhamento nos primeiros segundos. Além do machismo que há no futebol, os ouvidos da audiência ainda não estão acostumados com o agudo feminino em transmissões. Mas a sociedade também não estava habituada a ver mulher dirigindo nos anos 80 ou trabalhando fora de casa nos anos 50, eventos que hoje estão completamente inseridos ao cotidiano. O mundo mudou, neste caso, para melhor.>
Isabelly deu um passo importante para que, com o tempo, as transmissões dela sejam analisadas não por ser mulher, mas pelo que, de fato, ela é quando está narrando: locutora. Baseado nas entrevistas que deu a jornais e televisões ao longo de ontem, o principal ela fez, que foi se preparar. A mineira contou que, ao longo de quatro meses, narrou em casa os compactos de jogos transmitidos pela TV. No icônico Dia do Radialista, Isabelly colheu os louros do trabalho.>
Herbem Gramacho é editor de Esporte e escreve às quintas-feiras. >