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Publicado em 8 de julho de 2025 às 05:00
Há algum tempo, a expressão “homem com H” era frequentemente associada à virilidade, à força física, a algo relacionado a uma posição de poder, a partir da execução de papéis e tarefas que seriam exclusivas à posição masculina. Um filme, que traz em seu título essa expressão, narra recortes da história de Ney Matogrosso, provocador de um curto circuito nesse conceito, no início dos anos 1970, ao subir nos palcos com sua figura andrógina que fazia David Bowie parecer um lenhador do interior da Inglaterra. No filme, é difícil ser indiferente ao personagem Ney Matogrosso e às questões que ele nos traz. Uma das mais marcantes talvez seja a forma como sua história toca em temas relacionados ao gozo, ao desejo e ao amor. >
Na idade adulta, e já artista, são exibidos diversos recortes de puro gozo, traduzidos nas inúmeras cenas de sexo com mulheres, homens, e em grupo. Em uma entrevista recente, o próprio Ney revelou que não havia muitas fronteiras entre o corpo dele e o corpo do outro: “Era chegar perto que ia...”. Por vezes nos equivocamos ao acharmos que o gozo se localiza no objeto. Como exemplo, ninguém goza no álcool, goza do álcool. Ninguém goza na cocaína, goza da cocaína. A pulsão sai do nosso corpo para o objeto (álcool, cocaína, o corpo de outra pessoa) e retorna para o nosso corpo, onde sentimos os efeitos. O problema é quando a vida do sujeito gira exclusivamente em torno desse circuito, conduzindo-o por um caminho em que no horizonte se encontra a morte.O filme por vezes revela um Ney entorpecido pelo gozo, e que por pouco não contrai o vírus da AIDS. Uma cena em que o vírus é representado por uma serpente que passeia por sua cama, e por seu corpo, foi a metáfora criada pelo diretor para traduzir esse risco. Mas essa não é uma história somente sobre o gozo.>
Desde muito cedo aparece seu desejo pela arte, ao atravessar toda sua infância e adolescência desenhando. E quando o desejo entra em cena, saímos da posição autista do gozo para uma condição que inclui o outro; da paralisia para o movimento; da mortificação para a criação. Somente pela via do desejo é possível que, aos 84 anos, Ney Matogrosso continue se apresentando pelos palcos do Brasil e do mundo.>
Por fim, entra em cena o amor. As duas relações amorosas retratadas no filme revelaram um Ney numa dedicada e comprometida posição de cuidador de seus parceiros, algo que parecia tão distante da imagem de sujeito conduzido pelas relações de puro gozo, até então, e que nos faz lembrar da máxima lacaniana de que amar é dar o que não se tem. Ou, ainda, que só o amor é capaz de criar alguma solução para difícil equação do gozo versus desejo. Como nos lembra Jacques Alain Miller, amar verdadeiramente feminiza o homem, pois o coloca diante de sua falta, posição essencialmente feminina. O que as histórias de amor de Ney ensinam aos homens talvez seja que, para amar, é preciso ser homem sem H.>
André Dória é psicólogo e coordenador do Programa Bipolar da Holiste Psiquiatria>