O balanço do ano como uma gangorra

Escreva de modo simples, de olho nos algoritmos, nas regrinhas de SEO. É possível que, no próximo ano, a vida seja menos ordinária. Mas não é certo

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  • Kátia Borges

Publicado em 17 de dezembro de 2023 às 05:00

Fechar um ciclo imaginário, como alguém que lê a descrição de signos para o horóscopo. Há um padrão, e é claro que você o nota. E então desiste de ler as previsões dos signos. Padrões saltam dos hexagramas no oráculo, explodem no céu das metáforas, fogos de artifício. Mas ali eles estão à mostra.

Reler o livro do ano passado, foco obsessivo na literatura. Estar na caixa de guardados da moça. No caderno manuscrito do amigo. No vídeo do ator famoso. Num bloco de notas anônimo. Na mira de quem espinafra em público e elogia em sigilo. Ler os sinais confusos das pessoas.

Mais confusos ainda, os sinais das pessoas, para quem teve que aprender a ler de modo neuroatípico. Fazer do balanço do ano uma gangorra. A roda gigante que perdeu o raio. Paralisado no alto da roda gigante, olhar para baixo. Sem pânico, sem o receio de que a cadeirinha se solte do raio.

Aproveitar o fato de estar em perigo e ver as luzes lá embaixo, o movimento aflito das crianças em torno das máquinas de caçar prêmios. Reconciliar formalmente os erros do passado, as palavras medidas com fita métrica, medidas profiláticas para uma vida boa. Guarda-chuvas abertos.

Deitar a cabeça, à noite, no travesseiro e saber que se pode seguir adiante sem o peso das irresponsabilidades do passado. Tá feito, embora feio. No rádio do carro, pula-se as músicas “daquele tempo”, a rosa atômica, Hiroshima no peito, arrancada pelo talo. O foco obsessivo na literatura.

A leitura como modo de respirar. A leitura como fuga. E a literatura como grilhões que prendem escritores numa masmorra, com máscaras de ferro. E as modinhas todas, temperaturas do contemporâneo. Mandar tudo às favas. O leitor sério falaria que são apenas digressões.

O leitor sem seriedade classificaria como ganho e daria o assunto por encerrado. Escreva de modo simples, de olho nos algoritmos, nas regrinhas de SEO, seguindo aquilo que é considerado perfeito. É possível que, no próximo ano, a vida seja menos ordinária. Mas não é certo.