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Kátia Borges
Publicado em 23 de junho de 2019 às 11:00
- Atualizado há 2 anos
Ela vive em busca de pistas sobre si mesmo, enquanto a maioria se ocupa em ter razão. Ter razão é bem mais fácil, concordo. As pessoas comparam as suas selfies e consideram fazer parte de um todo. Investigar as próprias razões não dá ibope. Ela insiste, no entanto, em achar oFio de Ariadne. Frequentemente, vê-se enrolada nesse novelo, quase novela. “Alguém conta minha história. Ealguém mata os personagens”, recita para si mesmo, numa versão melodramática dos versos de Cecilia Meireles.>
Desde que entrou nesse labirinto, algumas vezes lhefaltam pernas para ir adiante. Os percursos de um labirinto são desenhados para confundir quem o percorre. Mind games forever. Nosso amigo mais leve morreu cedo. Viviaàs voltas com dramas insondáveis, incapaz de administrar a própria vida. Sejamos sinceros, quem realmente consegue? De minha parte, sempre preferi densidade à superficialidade peso pena. Daí a amizade com a escritora amarga, a compreensão de suas sentenças.>
Ela me convida para um café no fim da tarde. Pede que mostre novos poemas. Vou ao nosso encontro desarmada, levando meus inéditos. Não consigo compreender o universo em que se move o meu desejo. Ela sabe de seus erros, conta que viajou até a Índia. Esteve no meio de tudo aquilo, girou na porta do medo a chave dos mistérios. Ninguém é santo. Pedimos um Muralha da China na lanchonete da livraria. >
Será que acho por aqui um de seus livros? Enquanto o pedido não chega, desço e percorro distraída as estantes no setor de poesia. Volto para a mesa sem comentar que não localizei nenhum título. Esses grandes conglomerados são verdadeiros fast food literários. Vendem apenas os best-sellers lançados pelas editoras importantes, penso em silêncio e em consolo. Ela mexe lentamente o açúcar que ficou no fundo da xícara. >
Imagino que dirá algo profundo. Quando finalmente resolve me olhar nos olhos, comenta sobre suas idasvespertinas ao parque público. Leva consigo um pequeno notebook, onde segue escrevendo e escrevendo. É difícil passar dos 60 anos, o mercado quer carne jovem, dessas coisas que não compreendemos bem antes de chegar aos 40. Alguns escritores costumam ser intratáveis de todo modo, e disso entendo. >
As redes sociais são um laboratório de egos. Se te aceitam, vê-se logo que é na cota do acolhimento. Quieto, pule, deite na grama, pegue o galhinho que atiro longe. Sou uma pessoa de sorte. Os falsos amigos sempre se afastam por si mesmos. Você é perigosa, ela diz. Fico surpresa com aquilo, tão mansa, incapaz de matar a formiga que insiste em atravessar solitariamente a mesa em que estamos.>
Você percebe que o mercado é, na verdade, um grande circo – ela prossegue. Sigo em silêncio o itinerário tonto da formiga. Pessoas assim mandam tudo às favas como se deve, simplesmente não se importam. Ah, sim,agora mesmo. Escondo meus poemas dentro da bolsa e minto que os esqueci em casa. Ela pede desculpas por ter sido dura tantas vezes nas críticas ao que escrevo. Eu agradeço. Eu realmente agradeço. >
Nunca mais nos veremos de novo, mas ela não sabe.>