O que os olhos não veem, o coração não sente

Pegava aquele zero bem quentinho e ia costurando o um de quem aprende algo novo até chegar ao dois e ir seguindo, seguindo

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  • Kátia Borges

Publicado em 24 de dezembro de 2023 às 05:00

Meu pai e minha mãe não tiveram na vida grande chance de estudo. O que lhes vinha na boca, as lições que nos davam, nasciam da cultura popular que, hoje entendo, funcionava para eles como um oráculo. “O silêncio é de ouro”, aconselhava um deles. “Diga-me com quem anda e lhe direi quem és”, observava o outro.

No entanto, meu pai e minha mãe sempre consideraram estudo a coisa mais fina do mundo, como diz o poema de Adélia Prado. Ele guardava consigo uma caixinha de metal com seringas de vidro que pretendia entregar à primeira herdeira que se tornasse médica, espécie simbólica de presente, o que nunca aconteceu de fato.

Num ritual em família, repassei o seu legado a um sobrinho, logo que ele entrou na Escola Bahiana de Medicina. Dei para jornalista, coisa do Destino. As outras duas enveredaram pelas Letras, pelo Direito, pelo Teatro. E, desse jeito, Seo Bal, Seo Borges, Borjalo, acabou sem ver em vida uma das filhas conquistar o título.

Por ironia, hoje as três filhas têm doutorado, uma delas ainda em curso, outra já envolvida com pesquisas de pós-doc. E todas, de algum modo, lidam com a escrita, manejando as letras com o bisturi cirúrgico de análises teóricas ou operando em peito aberto, no malabarismo da poesia e da prosa, um corpo de narrativas.

Minha mãe sorria preocupada quando me via concentrada nos estudos, conciliando leituras noturnas e oito horas diárias de trabalho. E olha que eu não sabia, nunca soube muito, mas me esforçava. Pegava aquele zero bem quentinho e ia costurando o um de quem aprende algo novo até chegar ao dois e ir seguindo, seguindo.

Lembro de quando finalmente concluí o doutorado, no Instituto de Letras, o meu cachorro já bem velho, entrando e saindo de UTIs em clínicas veterinárias, uma demissão após mais de vinte anos na mesma empresa, e as letras dançando no papel em branco, enquanto tentava domesticar um pouco a fera do luto.

Meu pai e minha mãe haviam morrido, deixando comigo seus ditos. E não, eu não perseguia um desses títulos que fazem as pessoas lançarem os seus narizes para o alto. Se hoje alguém me pede que diga algo sobre o amor e a dor, após tantos anos de estudo, respondo: “o que os olhos não veem, o coração não sente”. E é isso.