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Kátia Borges
Publicado em 10 de janeiro de 2021 às 13:23
- Atualizado há 2 anos
Primeiro final de semana de 2021. Verão no Hemisfério Sul. A perspectiva de vacinação contra a Covid-19 anima, mesmo quem vive no Brasil. Mas, sinto que algo em nós resiste a deixar 2020. Talvez o pé atrás se justifique por uma espécie de Síndrome de Estocolmo. Identificado pelo psicólogo e criminologista Nils Bejerot em 1973, esse distúrbio mental explica por que algumas vítimas de violência costumam manifestar simpatia por seus abusadores e, muitas vezes, gratidão até.>
Especialistas dizem que enfrentaremos, em algum momento, episódios coletivos de estresse pós-traumático. Por certo, ainda há muito a estudar sobre o comportamento humano. Penso, por exemplo, no caso do soldado japonês Hiroo Onoda, que seguiu escondido na selva por trinta anos, achando que a Segunda Guerra não havia acabado. Mas o fato é que deixamos 2020 e que, daqui em diante, a vida seguirá o compasso do não sei como, do não sei quando, que há em seu cerne.>
Para meus amigos, ao desejar votos de final de ano, sem coragem de usar palavras como sorte ou felicidade, apelei para o desejo de que 2021 seja de esperança. Alguns responderam que sim, que ainda a sentem. Outros evocaram lucidamente a frase dita por Franz Kafka: “existe esperança, esperança infinita — mas não para nós”. Como argumentar com eles? Quanta insanidade e crueldade temos visto nesse país que um dia foi grande, nesse país-continente que se tornou ilha dos horrores.>
Falamos pelos cotovelos nas redes sociais, senhores de certezas sobre todas as coisas existentes no planeta. Mas a verdade é que, em relação à perplexidade e às angústias que atravessamos ao longo de 2020, ainda estamos mudos — especialmente no que se refere às expressões artísticas da tragédia. Como os soldados que voltavam da guerra em 1914, e aos quais Walter Benjamin se refere, ao abordar a obra do escritor russo Nikolai Leskov, num dos meus textos teóricos prediletos.>
Nunca se escreveu tanto e, no entanto, nada tem sido mais eloquente que o silêncio. Sobre esse mutismo que literalmente nos abate, lembro os versos do poeta pernambucano>
Alberto da Cunha Melo: “escrevemos cada vez mais para um mundo cada vez menos”. Por também pregar nesse deserto, muitas vezes me perguntam se a literatura pode ser salvação ou, quem sabe, algum oásis. Penso em Kafka, em Anna Akhmátova, em García Lorca, em Vladimir Maiakóvski.>
Penso, sobretudo, em Vladimir Maiakóvski e em seus versos que ecoam ainda hoje, mais atuais do que nunca em nossa época, em nossas vidas repletas de experiências compartilhadas em tempos tão interessantes: “o mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas”. O título desse poema, creio, também pode nos levar a alguma reflexão sobre este ano que começa e nos convoca: “E então, que quereis?”.>