Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Kátia Borges
Publicado em 11 de dezembro de 2022 às 05:00
Por esses dias andei lendo o ensaio autobiográfico de Adriana Lisboa, que já conhecia como excelente poeta e também romancista de talento. Todo o tempo que existe é o nome do livro, que foi lançado este ano e está na segunda reimpressão. O título vem de um trecho retirado de Na presença da ausência, escrito pelo poeta palestino Mahmoud Darwish, no qual ele fala sobre como o povo cigano encara a relação entre a vida e a morte. Para eles, o hoje é todo o tempo que existe.>
A narrativa nasce a partir da morte dos pais da autora, com uma diferença de sete anos e vinte e oito dias (ela em 2014, ele em 2021). Ao longo do livro, Adriana cita alguns outros escritores que abordam o mesmo tema, o luto, e que eu já havia lido antes, como Joan Didion (O ano do pensamento mágico) e Rosa Montero (A ridícula ideia de nunca mais te ver). Dois títulos belíssimos. Faz sete anos que minha mãe morreu e duas décadas que perdi meu pai (ela em 2015, ele em 2002).>
Já contei numa crônica aqui mesmo que, por pura coincidência ou, quem sabe, pela lógica misteriosa e inexplicável do Destino, meus pais morreram exatamente no mesmo dia, primeiro de dezembro, só que em anos diferentes. É como se tivessem marcado um encontro, talvez em um outro nível da existência, e confesso que gosto muito dessa ideia, porque me distrai do fato de que já não estão mais nesse planeta.>
Acabei forjando na minha cabeça esse espaço de reencontro entre os meus pais, completamente fora da lógica do tempo, que ressignifica o percurso conturbado que os dois viveram, entre idas e vindas, e onde ainda seguem juntos. Imagino meu pai lendo jornal e pronunciando de um jeito engraçado a palavra interesse. E minha mãe sorrindo e cobrindo os lábios com as mãos, como se sorrir fosse um pecado.>
A verdade é que, se eles habitam esse universo imaginário, eu também vivo em um outro planeta desde que os dois morreram. Um planeta bem pequenino, desses que são batizados com nomes de deuses greco-romanos. Sei que soaria clichê dizer que ele se chama saudade, quem sabe se o de um dos erotes não seria mais elegante. Mas recorro ao que Adriana Lisboa escreve em seu ensaio sobre como os clichês parecem ser tudo o que possuímos quando nos sentimos incomunicáveis.>