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Cão de calçolão: o bloco das piriguetes dos infernos

  • Foto do(a) author(a) Jolivaldo Freitas
  • Jolivaldo Freitas

Publicado em 27 de fevereiro de 2019 às 05:05

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

A primeira manifestação travesti explícita no Carnaval com certeza foi o Cão de Calçolão. Os homens colocavam máscaras vermelhas e chifrudas, lambuzavam o corpo com graxa e carvão e vestiam um calçolão, saindo para assustar os meninos e as mulheres que corriam para se esconder. Era legal por demais três coisas no Carnaval (e que não vão voltar), notadamente, lá pelos anos 1960. Carnavais sem a tecnologia de hoje, mas a cidade fervendo. A primeira coisa gostosa era o preparo de tudo o que significava a alegria: fazer os tambores com couro que se dizia de gato. Na verdade, não era gato coisa nenhuma por aqui. Os gatos perdiam sua pele para tamborim no Rio de Janeiro.

Aqui a gataria escapava, mas os bodes corriam e pulavam já sabendo que iam virar bumbos e repiques. Semanas antes do sábado de Carnaval, pois a festa começava somente depois da Semana Inglesa (quando o comércio excepcionalmente funcionava até o meio-dia, claro, coisa vinda dos comerciantes ingleses), após às 13 horas. O povo chegando aos poucos ao Centro da cidade. O frisson antecedente era a mobilização dos familiares para a confecção dos pierrôs e fantasias que podiam ser feitas em chita, pano de saco ou aninhagem, pintados à mão com tinta a óleo. Tinha essa de aerógrafo ou silk-screen, não!

Outra coisa era poder ir aos bailes de Carnaval que aconteciam nos diversos clubes da cidade – não estou falando dos clubes que à época – hoje não mais – pertenciam ou eram frequentados pelos ricos da cidade (inclusive, comerciantes ingleses, aqueles da Semana Inglesa) – como o Clube de Regatas Itapagipe, o Clube de Oficiais da Polícia Militar, o Império Atlético Clube, O Grempório, clube dos operários da Vila Operária da Boa Viagem ou mesmo os bailes da Escola Luiz Tarquínio, do Cine Uruguai, do Cine Liberdade. Um baile com sua bandinha chupa-catarro, muita serpentina – as mais lindas de papel laminado -, confetes e lança-perfumes que, quando o jato batia no olho, ardia pra danar, mas passava rápido e ficava aquele perfume de permissividade.

Os foliões mais retados se vestiam de mulher. Bom lembrar que antes, muito antes, antes mesmo das Muquiranas e outros grupos travestidos, os homens gostavam de se vestir com roupas que traziam um toque feminino. As misérias com as pernas peludas vestidos de gregos numa fantasia que era um retângulo de tecido enrolado no corpo formando pregas. Ou uma túnica com broches nos ombros, drapeada e com detalhes em ouro falso ou prata de mentira.

A fantasia de maior sucesso – mais que a de marinheiro francês – era a de gladiador, que muitas das vezes traziam também o clâmide como prendedor. As sandálias de couro rasteiras e com correias subindo até o joelho. Em seguida na preferência os homens se vestiam de havaianas. Uma graça.

Mas, tinha os bebuns, os doidos e os escrotos que roubavam os vestidos da mulher ou das irmãs e saiam pelas ruas seguidos pelos meninos, e tome trejeitos, e tome desmunhecar e nada de tomar jeito, e a alegria era muita quando passava um travestido. O sucesso era tanto que, nos anos 1970, Salvador já tinha vários grupos que saiam vestidos de mulher em pequenos blocos que utilizavam cordas (os cordões).

Foi um tempo de perder a vergonha e mostrar literalmente seu lado feminino. Coisa que era comum no final do século passado, que se perdeu no início deste século, mas que ainda é uma forma de fazer o Carnaval com sua cara de escrache. Vi um machão tomar coragem, pegar o collant da mulher, vestir, entrar na Avenida Sete, receber um beijo de uma foliã perdida na multidão e a mulher, que o seguia semiescondida, pegar pela alça e levantar o pobre coitado, que nem gemia com as partes baixas amassadas. Carnaval é folia. É toda fantasia.

Como foi dito antes, o contraponto eram os homens fantasiados de gorilas e aqueles que gostavam de se vestir como Diabo e metiam medo nas crianças e nas mulheres numa época que falar o nome do Satanás era caminho certo para o inferno. Os caras que tinham coragem de se vestir de Belzebu, do Sete Capas, dos Tinhoso, do Fedegoso, faziam do Carnaval uma festa do Cão de calçolão com calçola roubada até das avós ou de um varal qualquer.

Mas é bom registrar que o primeiro grupo, primeiro bloco, cordão de homens travestidos foi o Mariposas de Roma. Cada um parecendo uma piriguete dos infernos com suas maquiagens carregadas.

Jolivaldo Freitas, 65 anos, é escritor e jornalista

Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de reponsabilidade dos autores