Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Nelson Cadena
Publicado em 19 de outubro de 2023 às 05:00
No final do século 10, o Hospital Santa Izabel fazia uso de 1316 remédios preparados diligentemente, de acordo com os compêndios e vade-mécuns europeus, pelo boticário, que era um profissional para lá de qualificado, tanto que mais bem remunerado do que os médicos, com exceção do diretor-geral da instituição. Na folha salarial do ano de 1900 o farmacêutico recebia um ordenado de 250.000 réis/ mês, enquanto os médicos clínicos recebiam 100.000 réis, os cirurgiões 56.660 réis e os internos 48.330 réis. O salário do boticário era superior ao dos médicos administradores do Hospital dos Lázaros e do Hospício São João de Deus. Valia cada centavo recebido, pois o seu trabalho demandava muita atenção e grande conhecimento da farmacopeia e química. >
As tarefas do boticário consistiam em preparar unguentos, pomadas, éteres, gargarejos, óleos, poções, emulsões, colírios, cerotos, vinhos medicinais, vinagres medicinais, pós, linimentos, julepos, injeções hipodérmicas, cáusticos, bálsamos, colódios, águas medicinais, cataplasmas, emplastros, grânulos, gliceróleos, clisteres, xaropes, supositórios, cataplasmas, cápsulas e pílulas. Para isso, manipulava mais de uma centena de substâncias da farmacopeia nativa e de laboratório, inclusive algumas de alto risco se algum equívoco na dosagem, como cannabis sativa, cocaína, morfina, cicuta, cianureto, arsênico, absinto, enxofre, ópio, papoula e acônito. >
O farmacêutico também preparava os banhos, como o feito com o cozimento de folhas de nogueira para a lavagem de úlceras crônicas. As doenças sexualmente transmissíveis eram um sério problema e recorrente no hospital, devido à grande incidência de blenorragia e aos altos índices de mortalidade causados pela sífilis. Para a cura da blenorragia, o farmacêutico preparava cápsulas de sândalo ou de terebintina, ou, então uma emulsão composta de bálsamo de copaíba, água de flores de laranjeira, água de alface, xarope de papoulas e goma arábica. Para a cura do câncer, que já era doença conhecida na época, os médicos receitavam a chamada água phagedaenica. Na literatura médica antiga, esta água, que tinha cal na sua composição, também era preconizada para a cura da gangrena.>
Outra causa mortis de grande incidência no final do século 19 e início do século 20 era a tuberculose, tratada com óleo de fígado de bacalhau, industrializado como Emulsão de Scott, ou manipulado, contendo um ou outro hipofosfitos de cal e soda. Para as verminoses, uma das principais causas da morte prematura de crianças, eram produzidos no hospital vários purgantes, o mais comum era o da mistura de óleo de rícino com goma arábica, água de hortelã e xarope cítrico. E a nossa popular farinha de mandioca era utilizada no Santa Izabel como emoliente, assim como o pão embebido em leite e a farinha de linhaça, todos na forma de cataplasmas aplicados várias vezes ao dia, para o tratamento dermatológico.>
O farmacêutico era um profissional respeitadíssimo. Diogo de Castro, primeiro boticário da cidade, veio na mesma nau de Thomé de Souza, o que atesta o seu prestígio. O seu cargo oficial tinha o pomposo nome de Químico-Mor. De fato, era. Quase um alquimista. Manipulava extratos e infusões de plantas. Séculos depois, os boticários manipulavam também as substâncias produzidas por laboratórios e preparavam o remédio na hora, de acordo com o receituário do médico. A Santa Casa da Bahia preservou o mobiliário da Botica, exposto no museu da instituição.>
Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras >