O feminicídio na mídia

O protocolo da Associação Bahiana de Imprensa propõe para as vítimas de feminicídio um olhar qualificado e responsável da mídia

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  • Nelson Cadena

Publicado em 4 de abril de 2024 às 05:00

“Em meados do século XIX um feminicídio chocou a sociedade baiana. Júlia Fetal, jovem de 20 anos, foi assassinada com um tiro, na sala da residência da família, pelo professor Estanislau Da Silva Lisboa, seu noivo. Foi o primeiro feminicídio na história do Brasil a ter repercussão no país pelo envolvimento de Dom Pedro II, instado a lhe dar um indulto a pedido da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, irmandade constituída pelas mais influentes famílias da terrinha”. Documentos do acervo da Santa Casa revelam a iniciativa.

O texto acima é uma das referências históricas do protocolo antifeminicídio que a ABI-Associação Bahiana de Imprensa conceituou como Guia de Boas Práticas Para a Cobertura Jornalística, “destinado a servir como instrumento de consulta, apoio e orientação na produção cotidiana desse noticiário específico”. E haja cotidiano. De 2017 a 2023, a Bahia registrou 672 feminicídios. Isso significa que uma mulher foi vítima letal de violência de gênero a cada três dias, segundo dados da SSP-BA.

O guia da ABI foi elaborado durante três meses por sete diretoras da entidade, após consulta à legislação, manuais de boas práticas na cobertura da violência contra a mulher, outras iniciativas sobre o tema, além de referências históricas, e recentes, especificamente a cobertura dos casos Júlia Fetal (1847), Ângela Diniz (1976), Sandra Gomide (2000) e Sara Mariano (2023). No episódio aqui referido de Júlia Fetal, o documento evidencia: “Silva Lisboa cometeu o crime pelo mesmo motivo que são cometidos os feminicídios hoje: ciúme e rejeição. Naqueles idos, a rejeição entre as famílias proeminentes, o caso de Júlia e Estanislau, era mais constrangedor”.

O assassinato de Júlia Fetal, praticamente ignorado pela imprensa da época, ganhou relevância com a publicação do romance A Bala de Ouro, de Pedro Calmon, em 1947, com o constrangedor adendo “História de um crime romântico”. A crítica, na época, encarou o relato do historiador como um ato tresloucado, um impulso sem culpa, a narrativa de um crime praticado por um jovem apaixonado. Um jornal qualificou a obra como “amores do romantismo”, relevando o ato criminoso em si.

E Jorge Amado, em Bahia de Todos-os-Santos, refletindo preconceitos da época, descreveu a personagem como namoradeira e que “nascera para amante, beijos furtados, para encontros clandestinos”. Isso porque na memória histórica dos fatos, Júlia rejeitara Estanislau, justamente porque se apaixonara por outro. Apenas isso. E, mais de um século transcorrido desse episódio, setores da imprensa relativizaram o assassinato de Ângela Diniz, por Doca Street, atribuindo-lhe uma vida pregressa, culpando a vítima por namorar outros homens.

A tese machista da “legítima defesa de honra”, atribuindo à Ângela um comportamento promíscuo, prevaleceu no julgamento, provocando indignação e a mobilização de grupos de mulheres com a campanha “quem ama não mata”, contrapondo-se ao argumento “matou por amor”. E, em novo júri e numa virada de opinião da mídia, sob pressão, Doca acabou condenado a 15 anos de cadeia. O protocolo da ABI propõe para as Júlias, Ângelas e todas as vítimas do feminicídio um olhar qualificado e responsável da mídia, e seu engajamento no combate à violência contra a mulher.

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras