O pirão de Thomé de Souza

A tripulação que aqui aportou encontrou fartura de farinha e de galinhas; Thomé de Souza deve ter pedido ‘meu pirão com galinha’

  • Foto do(a) author(a) Nelson Cadena
  • Nelson Cadena

Publicado em 21 de março de 2024 às 05:00

Em algum momento de sua estadia de quatro anos, na cidade recém-fundada, Thomé de Souza, o nosso primeiro governador-geral, deve ter pedido “meu pirão com galinha”. A tripulação que aqui aportou encontrou fartura de farinha e de galinhas, a alternativa de proteína ao peixe, tão farto na Baía de Todos-os-Santos. Além de animais de caça e, entre os domésticos: patos, bois, vacas, ovelhas e cabras que os índios criavam, segundo testemunhou o padre Nóbrega e informou ao Provincial dos Jesuítas, em carta datada de 1549.

Na missiva, o jesuíta destacou a variedade de frutas cultivadas, desde a uva - que séculos depois seria importante cultura em Itaparica - e o religioso lamentava, a pequena produção “por causa das formigas que fazem muito dano”, a outras frutas: cidras, laranjas, limões que “dão-se em muita quantidade” e figos “tão bons como o de lá”. Sobremesa garantida, e no almoço “a raiz de pau que chamam mandioca, da qual fazem uma farinha que comem todos, e dá também vinho, o qual misturado com a farinha, faz um pão que escusa o trigo”. O vinho de mandioca, o mani-oara, ainda hoje é produzido no Pará.

Nóbrega ressaltou a grande quantidade de galinhas, fartura que levou os índios do Paraguassu a pagar sua punição, quando capturados, por ter assaltado, cativado e matado grande soma de Tupinambás, numa aldeia de catequese da periferia da cidade, “com tributo de certa farinha e galinhas” e a promessa de não comerem carne humana e de serem cristãos e declararem obediência ao governador. A fartura de proteína, especialmente do pescado e dos animais de criação, estes, introduzidos no país, desde 1532, igualmente as frutas, sustentou o funcionalismo, a soldadesca, e quem aqui aportou, enquanto se construía a cidade do Salvador.

Comidas muito mais saudáveis do que o indigesto toucinho e carnes secas que o milhar de homens que veio com Thomé de Souza, degustou na sua longa travessia atlântica, oito semanas, junto com o vinho. O poder público, enrolado desde a fundação da cidade quando passou a perna na viúva de Pereira Coutinho, não honrando o pagamento da indenização combinada, se valia de mantimentos para pagar as diárias dos operários que construíam Salvador e o soldo de alguns funcionários e, quando não pagava os fornecedores, justificava.

Foi assim que o tesoureiro da cidade, sem nenhum constrangimento, informou ao senhor Gonçalo Ferreira que reclamava na justiça os valores combinados pela remessa de 31 mil sardinhas, do Tejo para Salvador: “Não paguei, porque não tinha dinheiro”. Pensando bem, a propósito dos operários receberem o seu ordenado em mantimentos, até que não era tão ruim assim. Aprenderam com os índios a jogar a água do cozimento da proteína, na farinha, e preparar o delicioso pirão, de peixe ou de galinha. E após degustado, celebrar a vida numa esteira de palha, ou na rede de cipó. Oh vidão!

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras