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Publicado em 21 de agosto de 2025 às 17:02
Marcelo Petroli se considera um cara de sorte. São pelo menos 11 anos de imersão nos vinhedos e adega da Vinícola UVVA, onde atua como enólogo-chefe e diretor técnico, sendo responsável também pela gestão do campo. Uma história que começou como uma consultoria em 2014, e se transformou em um trabalho com total devoção a partir de 2015. >
“Quando assumi, cheguei a perder noites de sono pensando: Eu disse que dava [conta], e agora?”, conta o profissional. Hoje ele se diz realizado profissionalmente, engajado em continuar aprendendo sobre o terroir e entendendo, safra a safra, o que é produzir vinhos na Chapada Diamantina. >
E o que é produzir vinhos na Chapada? Que terroir é esse? >
Aberta oficialmente em 2022, a UVVA é um dos empreendimentos do Grupo Fazenda Progresso, que também é proprietária da marca de cafés especiais Latitude 13. Situada em Mucugê (BA), a vinícola possui 52 hectares de vinhedos plantados sobre solos franco argilo-arenosos de boa profundidade e drenagem. Localizado no coração da Bahia e em meio ao Cerrado, o empreendimento está numa área de clima tropical de altitude, com verões chuvosos e invernos secos. >
Diferente do Sul, que vive seu período de vindima entre o verão o outono; e do Vale do São Francisco, onde há colheita de uvas quase todos os dias do ano, a vinícola baiana optou pela técnica da dupla poda, que realinha o ciclo da videira de forma a permitir que a safra ocorra no inverno. Nesta estação seca, as condições climáticas são mais adequadas à produção de uvas não apenas sãs, mas excepcionais. >
Na UVVA, as videiras são manejadas em espaldeira com orientação Norte-Sul e aproveitam bem a luz solar. E essa luz é abundante: as videiras estão localizadas a uma altitude de 1.150 metros no sopé da Serra do Sincorá, que as protege da umidade do Oceano Atlântico. “Praticamente não tem nuvens. Eu diria que é um céu de brigadeiro”, comenta Petroli.>
O contraponto a essa alta disponibilidade de calor e luz é a amplitude térmica, que pode variar até 20°C entre o dia e a noite. “Nada se compara ao que temos aqui. O clima é totalmente distinto e a amplitude térmica é o grande diferencial”, diz o enólogo. Unindo essas condições a técnicas específicas de manejo do vinhedo, tem-se uvas que demoram mais a amadurecer, mantendo acidez durante o seu ciclo de crescimento. >
No momento da vinificação, os esforços são direcionados a manter a elegância dos vinhos, com seleção de bagas e extração comedida nos tintos. Nos brancos, uso consciente de barricas de carvalho e técnicas como sur lie, que aumentam o volume de boca. Há experimentos com uso de leveduras selvagens e várias microvinificações, que geram produtos de pequeníssima produção. É o caso de um Pinot Noir delicadíssimo, raro de se encontrar no mercado; e de um Viognier que será lançado em breve na linha Microlote. >
Na entrevista a seguir, Petroli conta suas impressões sobre a safra 2025 e compartilha mais sobre seu trabalho. >
Paula Theotonio: O clima de 2025 está surpreendendo?>
Marcelo Petroli: Está sim, muito seco, bastante seco, e com uma maior amplitude térmica. O que a gente observou é que o frio chegou antes do que nos outros anos, já no mês de maio. E esse frio vem se mantendo, o que alongou a temporada de colheita. Teremos um ciclo mais longo, porém com clima muito seco e de excelente qualidade. A única diferença é realmente esse alongamento do ciclo. Para uvas brancas e tintas, é excelente, porque garante frescor. O resultado esperado é ótimo tanto para brancos, espumantes quanto para tintos.>
Paula Theotonio: E nos últimos anos, tem se mantido esse padrão?>
Marcelo Petroli: Tem se mantido sim. Não temos grandes variações de temporada para temporada, mas nenhuma é igual à outra. Uma diferença de apenas 2 graus – seja de máxima, mínima ou média – já é suficiente para mudar o ciclo e o comportamento das plantas.>
Paula Theotonio: Marcelo, você está aqui desde o começo do projeto, não é?>
Marcelo Petroli: Praticamente desde o início. A primeira colheita comercial foi em 2019, mas já estávamos pesquisando desde 2011, 2012.>
Paula Theotonio: Então já são uns 13 a 14 anos de desenvolvimento. O que você pensava no começo? E o que aprendeu nesse tempo?>
Marcelo Petroli: Olha, o aprendizado é enorme. Eu sou do Rio Grande do Sul, já trabalhei no Sul, no Sudeste e também no Vale do São Francisco. E posso te dizer: nada é igual ao que temos aqui. No início eu tinha uma ideia de onde poderíamos chegar, mas ao longo do caminho houve algumas coisas que precisaram ser revistas. E muitas surpresas positivas também com relação ao clima.>
Paula Theotonio: Pode dar um exemplo?>
Marcelo Petroli: A maturação fenólica completa das uvas. Foi uma surpresa sensacional. A condição de clima seco. Os históricos de clima já indicavam essa possibilidade, mas a prática mostrou resultados ainda mais positivos do que eu esperava. Essa coisa do sol ser bastante intenso nessa região. E a altitude. A altitude é o grande diferencial de Mucugê.>
Paula Theotonio: Houve necessidade de recalcular a rota do projeto, em função das descobertas?>
Marcelo Petroli: Sim. Teoricamente, pensávamos em produzir vinhos muito encorpados e extraídos, para guarda. Podemos elaborá-los, mas na prática observamos que nossas uvas entregam vinhos mais elegantes, de corpo médio, com frescor e taninos mais aveludados. São vinhos que têm potencial de guarda, mas também frescor e acidez, ou seja, um conjunto completo para o consumidor.Essas características se tornaram marcas da nossa produção.>
Paula Theotonio: E quanto às novas variedades? Vocês têm um campo de testes, certo?>
Marcelo Petroli: Temos, sim. De lá já sai o Viognier, plantado em um terroir diferente, a 1.280 metros de altitude, distante cerca de 60 quilômetros daqui, ainda na Fazenda Progresso. É uma área distinta, onde muda o clima, a amplitude térmica. Lá replicamos Cabernet Sauvignon, Merlot, Cabernet Franc e Petit Verdot. Mesmo com variedades iguais às que cultivamos no vinhedo principal, temos entregas distintas: mudam cor, aromas, taninos, frescor. E aqui dentro das nossas quadras também identificamos situações diferentes, que acabamos utilizando para nossa linha Microlote. É uma linha que nasce exatamente da observação dessas quadras. A gente vem e percebe uma mancha de solo distinta, com um comportamento distinto da videira. Marcamos e damos um tratamento diferenciado, desde controle de maturação, passando pela colheita e vinificação em separado na “microvinícola” [sala de microvinificações]. E isso não se repete no ano seguinte na mesma área, porque já tem influência da mudança do clima. Aí você tem que estar sempre observando muito.>
Paula Theotonio: O que mais te empolga em seu trabalho?>
Marcelo Petroli: Olha, eu me considero realizado profissionalmente. Porque são poucos profissionais que têm a oportunidade de ser convidados a conhecer o projeto no papel, participar da implantação desde o início. Desde preparo de solo, desde escolha de equipamentos de vinícola. Tive o privilégio de trabalhar com as três vitiviniculturas que temos no Brasil, fui somando um pouco de conhecimento de cada região e entendendo o terroir daqui. É para poucos ter um projeto dessa amplitude, dessa dimensão em sua mão. Então eu me considero um profissional feliz, realizado. Eu já trabalhei em outras empresas, projetos grandes, mas você entra e faz parte da engrenagem que já existe. Aqui você monta a engrenagem. E a responsabilidade é muito grande também, porque a expectativa de quem está investindo é grande também e você tem que corresponder. >
Paula Theotonio: É também bastante trabalhoso, não é?>
Marcelo Petroli: Quanto a trabalhar no vinhedo, eu sempre falo que é um privilégio, que todos os enólogos deveriam fazer. Porque no momento que você recebe a uva na vinícola e precisa tomar as decisões na vinificação, você já sabe o que você vai fazer porque entende o que aconteceu no vinhedo. E sim, é muito mais responsabilidade.>