À nossa felicidade, passada ou futura

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  • Paulo Sales

Publicado em 3 de outubro de 2022 às 05:05

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Raras vezes foi tão difícil para mim conceber uma crônica. Desta vez, não por falta de assunto. Mas porque nunca me pareceu tão extenso o intervalo que separa o dia em que escrevo do dia em que o leitor me lê. Como se o meu texto estivesse encerrado em uma garrafa lançada ao mar ou fosse um poema guardado num porão esquecido para um dia ser lido. É uma crônica que já nasce extemporânea, obsoleta, anacrônica, que nem uma ficha de orelhão, uma fita cassete, um bilhete de mega sena não premiado. Enfim, um objeto sem serventia, pronto para ser lançado ao lixo. Mas mesmo assim insisto em escrevê-la.

Esta crônica se beneficia de matérias-primas de boa qualidade, mas que talvez não sirvam para nada. Cada parágrafo ganha vida entre saborosos goles de um vinho branco da Patagônia e lindas canções de Leonard Cohen. É uma noite calma e quente de quarta-feira e transito entre a apreensão e a euforia. Como disse, esta é uma crônica ultrapassada, impregnada de sentimentos velhos e inúteis. Você, que lê este texto no dia 3 de outubro de 2022, já sabe evidentemente o que aconteceu ontem. Eu não faço ideia. Queria estar no seu lugar.

Enquanto você avança ou não por estas linhas enviesadas, posso estar embriagado de felicidade extrema ou entorpecido por um travo amargo, nascido de um coito interrompido por mais quase um mês. Posso estar envolvido em prazer desmedido, hedonista e dionisíaco, como um personagem de Bukowski. Ou simplesmente enfastiado e decepcionado, como alguém que encara um trabalho detestável padecendo de uma incômoda ressaca moral.

Derrotamos o fascismo? Destroçamos suas entranhas? Dizimamos seus indícios de metástase? Não, é claro que não. Quem diria que no seu berço, a Itália, ele renasceria 80 anos depois? Quem diria que esse cadáver insepulto, pendurado de cabeça para baixo num posto de gasolina, retornaria à vida na forma de uma loira sorridente? O mal reserva muitas artimanhas, e o fascismo é definitivamente um mal. Vimos e vemos do que ele é capaz.

Receio que este texto acabe ganhando contornos um tanto melancólicos, não condizentes com um possível clima de celebração que estaria tomando o país desde a noite de ontem – não a minha noite de ontem, mas a sua, leitor. Uma noite de domingo tomada, como diria Chico Buarque, por uma ofegante epidemia que se chama Carnaval. E que não seja uma alegria fugaz, porque já nos basta de frustrações. Porque, quando o assunto é política, sou diplomado em matéria de sofrer, para usar agora as palavras de Batatinha.

Vi as Diretas Já se tornarem “diretas já era”, como disse meu pai. Vi Fernando Collor ser eleito e tomar posse. Principalmente, vi Jair Bolsonaro ser eleito e tomar posse, após uma ruptura institucional promovida por vigaristas. Em artigo na Folha de S.Paulo, o escritor Sérgio Rodrigues definiu com precisão o elemento a quem acabo de me referir: “Bolsonaro é o zero absoluto do espírito, o grau em que as virtudes viram perebas, o conhecimento apodrece, a compaixão se joga debaixo do ônibus, a luz é sugada pelo breu, o amor azeda em ódio”.

Quero crer que acordaremos mais leves nesta segunda, que para mim é ainda um ponto futuro e indefinido, como a final da Libertadores para o Mengão. Nossa ressaca será um deleite, nosso coito se converterá em gozo, nosso aperto no peito se tornará pletora de alegria. Explodiremos como bombas de São João, efusivos como escravos alforriados depois de quatro anos de desdita. E xingaremos e blasfemaremos e dançaremos como possuídos. Porque é isso que somos, seres repletos de paixão, furor e desejo de uma vida que nos dê prazer, dignidade e aspirações.

Mas, caso nada disso tenha se concretizado, prossigamos. Como peregrinos rumo a um santuário remoto. Como loucos ensaiando um esboço de lucidez. Como navegantes em noites de tempestade. Falta pouco. Muito pouco. Talvez nada para você, que ainda está por aqui se aventurando nesta crônica velha feito pão dormido ou jornal de anteontem. Mas ainda um gigantesco ponto de interrogação para este que escreve. Daqui deste presente/passado, eu torço por nossa felicidade futura. Seja ontem ou seja no próximo dia 30. Vamos vencer.