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Paulo Sales
Publicado em 17 de outubro de 2022 às 05:00
Minha mente é uma página em branco. Exausta, entorpecida, enfraquecida, tentando se desvencilhar do embotamento para doar uma ou duas linhas que me ajudem a achar o caminho. Mas, como na fábula de João e Maria, algum pássaro comeu as migalhas de pão que lancei ao chão para me reencontrar. Agora estou perdido. E a tela à minha frente é também uma página em branco.>
Espaireço lendo poemas de Borges. E me deparo com sucessivas epifanias. Invejo a mente prodigiosa do portenho, que transforma inquietações prosaicas em versos sublimes, como quem tece auroras e crepúsculos numa cadeira de balanço. Metáfora sem pé nem cabeça que, não sei bem por que, me faz lembrar dos versos de outro poeta maior, o russo Maiakovski: “Costurarei calças pretas/Com o veludo da minha garganta/E uma blusa amarela com três metros de poente”. Ah, os poetas, sempre prontos para nos arremessar ao delírio. >
Em O Bastão de Laca, Borges especula sobre quem seria a pessoa que fabricou a bengala que manuseia: “Penso no artesão que trabalhou o bambu e o vergou para que minha mão direita pudesse ajustar-se bem ao punho. Não sei se ainda vive ou se está morto (…) Nunca nos veremos. Está perdido entre novecentos e trinta milhões. Existe, no entanto, um liame entre nós. Não é impossível que Alguém tenha premeditado este vínculo. Não é impossível que o universo precise deste vínculo”. >
Matuto sobre o que diz Borges. E sobre os desconhecidos com quem estabelecemos alguma espécie de conexão, ainda que tênue e passageira. Há, no mundo, aqueles que amamos e são muito poucos. Há os que conhecemos e que estimamos, agora já em um número menos desprezível. Há os que vemos de vista, pessoas que cumprimentamos no elevador ou durante um passeio no parque. Não sabemos seus nomes, muito menos por que sofrem, se é que sofrem. Ou por que amam, se é que amam.>
Há, por fim, os anônimos absolutos. Aqueles de quem não fazemos ideia de como contorcem a boca ao sorrir ou como se enxergam no espelho. Rezam todas as noites? Desesperam-se na insônia? Consomem-se em depressão? Muitas vezes estão ali, passando ao largo de nós como espectros borrados numa foto que tiramos. Noutras, nos oferecem paçocas no sinal para que possamos ajudá-los, ou nos ajudam com uma receita de remédio na farmácia. >
De outros sequer vemos o rosto, apenas a voz em ligações indesejadas. Sotaques dos mais diversos, que esbanjam simpatia e camuflam uma rotina de tédio e metas por cumprir. Resta ainda a multidão anônima – entre os bilhões de seres humanos que ignoram por completo a nossa existência e tudo que constitui a nossa essência – que de certa forma está presente na nossa vida: o trabalhador em regime de semiescravidão que urde nossas roupas na China. O agricultor no interior de Goiás que, enquanto dormimos, colhe a fruta que comeremos no café da manhã de amanhã.>
Nesse ponto, Borges dialoga com Ferreira Gullar, naquele lindo poema em que o maranhense refaz o caminho do açúcar que adoça o seu café e não “surgiu dentro do açucareiro por milagre”. Açúcar que não foi feito por ele, muito menos “pelo Oliveira, dono da mercearia”. Tampouco o fez o dono “de uma usina de açúcar em Pernambuco ou no estado do Rio”. O açúcar, que era cana, “veio dos canaviais extensos que não nascem por acaso no regaço do vale.” >
Gullar então complementa: “Em lugares distantes, onde não há hospital/nem escola,/homens que não sabem ler e morrem de fome /aos 27 anos/plantaram e colheram a cana/que viraria açúcar.//Em usinas escuras /homens de vida amarga/e dura/produziram este açúcar/branco e puro/com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.”>
Os poemas que rememoro e reproduzo nesta crônica são migalhas que me trazem de volta. Como se fossem capazes, cada um a seu modo, de alumiar o meu caminho. Avanço. Entorpecido pelo vinho e embevecido pelo jazz, avanço rumo ao fim de um texto em boa parte construído com a genialidade alheia. Retalhos doados por mestres que me inspiram e me fazem ver o quanto a vida vale a pena. “Embora o pão seja caro e a liberdade, pequena”.>
Faço, então, um brinde aos desconhecidos. Aqueles que se desfazem da própria existência para produzir açúcar ou os que se esmeram em conceber uma bengala perfeita, a ser usada por um gênio ou um idiota. Aqueles que lutam ou desistem, que se embrenham no próprio abismo ou preferem o conforto da ignorância. Aqueles que, como eu, escrevem parágrafos que quase ninguém lê numa noite de quinta-feira, enquanto a vida se expande feito uma hemorragia.>