O mal-estar da civilização tem a cara do Coringa

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  • Paulo Sales

Publicado em 21 de outubro de 2019 às 05:00

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Joaquin Phoenix faz o vião Coringa com entrega total (foto/divulgação) Assisti, entre horrorizado e fascinado, ao Coringa de Todd Philips. E enquanto os infortúnios vividos por Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) se sucediam na tela, me vinha à tona um trecho da entrevista do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro à Agência Pública, que havia lido horas antes: “O quanto você pode ferrar uma população sem produzir uma insurreição sangrenta? Até quando você pode ir tirando direitos, ferrando, explorando, expropriando, matando, jogando na informalidade, sem que isso produza um motim, uma revolução, uma explosão de violência popular? É quase como se fosse um experimento científico: o quanto eu posso torturar esse bicho antes dele morrer, sem que ele morra?”.

Não é descabido afirmar que o Coringa é fruto de um experimento científico dessa natureza, mas é insuficiente para tentar compreendê-lo. Estamos diante de uma narrativa repleta de camadas subliminares, que não se esgota numa primeira leitura. Miserável, infeliz, de aspecto bizarro, portador de transtornos mentais graves e incapaz de estabelecer relações sólidas com outros que não sua mãe (também ela doente mental), o palhaço Fleck é um retrato fiel da vulnerabilidade social em que está inserido. Vive de bicos, mora em um conjunto habitacional distante e deplorável e depende da assistência social para tomar os remédios que precisa para não surtar. A cidade em que vive – Gotham City, mas na essência a violenta Nova York de fim dos anos 70 – está longe de ser um território acolhedor para quem habita a escória.

Acompanhamos o tortuoso processo de tomada de consciência de Fleck e a sua transformação no anti-herói que, sem se dar conta, acaba personificando um mal-estar generalizado que deriva para o caos. Há algo de muito frágil nele, e ao mesmo tempo um poder imenso, que fica latente até explodir. Uma das fagulhas que desencadeiam a transformação é a arma que recebe de um colega mal-intencionado. Outra, a descoberta de fatos aterradores do próprio passado. Nesse momento, o demente quase inofensivo se transfigura. Espancado de forma covarde, Fleck reage e mata. A partir daí se tornará um assassino em série refratário a medo, remorso ou compaixão. Nasce o Coringa.

Tomando como base um personagem amplamente explorado pela cultura pop, Todd Philips dá forma a uma alegoria essencialmente política. Nesse sentido, Coringa lembra V de Vingança, o cult de James McTeigue. Mas, ao contrário deste, o personagem principal não é um ativista bem-intencionado, e sim um homicida ensandecido. O fato de sua imagem – a máscara do palhaço – simbolizar a convulsão social que paralisa a cidade evidencia o grau de desalento das massas: elas não têm a quem recorrer.

Coeso, bem dirigido e com uma atuação de antologia de Phoenix, Coringa reverbera questões fundamentais do mundo contemporâneo: desigualdade social extrema, ausência do estado, preconceito, violência (inclusive como recurso contra a opressão), rejeição aos ricos e a tudo que representam, banalização das armas de fogo. É um grito de horror e de socorro de gente que não aguenta mais. Mas é também um sinal de alerta: o mundo, do jeito que está, beira o insuportável. E um dia, como diria Humberto Gessinger, a corda arrebenta do lado mais forte.