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Paulo Sales
Publicado em 8 de novembro de 2021 às 05:06
- Atualizado há 2 anos
O crânio de uma criança que viveu há pelo menos 250 mil anos foi encontrado recentemente num local chamado Rising Star, na África do Sul. Essa região é conhecida como “berço da humanidade”, pela fartura de fósseis de antepassados nossos já encontrados por lá. Pertencente à espécie Homo Naledi, a criança devia ter entre 4 e 6 anos. Apenas os pedaços do crânio e alguns dentes foram encontrados. Tudo isso está em uma reportagem que leio no G1.>
Apelidada de Leti (algo como “Perdido", em um dialeto sul-africano), ela parecia estar sozinha na caverna onde foi achada. Não há vestígios de outros esqueletos. É um local remoto, de difícil acesso. Observo o pequeno crânio de Leti, reconstituído pelo pesquisadores, numa das fotos que compõem a matéria. Delicado e frágil, ele cabe na palma de uma mão adulta. Lembra uma pequena escultura.>
O que fazia Leti ali, naquele ermo sistema de cavernas? Um garotinho ou garotinha possivelmente sozinho, se escondendo de predadores e se abrigando do frio e da chuva. Sim, tinha entre 4 e 6 anos. Pensemos numa criança com idade aproximada nos dias de hoje. Provavelmente não teria qualquer chance de sobrevivência sem a companhia de um adulto, como Leti parece não ter tido. Mas ela estava lá, lutando por si e, sem saber, pela continuidade da sua espécie.>
Imagino o seu pavor, a sua incompreensão, o seu instinto de sobrevivência aguçado, que acabou não lhe servindo para nada. O escuro e as sombras. Os ruídos ameaçadores: ganidos ao longe, o ronco de um felino faminto, o farfalhar das folhas. Sem pai, sem mãe, sem irmãos, sem colo, sem consolo. Na sua mente primitiva, de espécie primitiva, passou em algum momento a possibilidade de que a sua cabecinha seria descoberta 250 mil anos depois por uma espécie mais evoluída que a sua? Evidente que não.>
Transponho velozmente esses 250 mil anos e desembarco nos dias atuais, como se pilotasse uma máquina do tempo concebida por H.G. Wells. Por um acaso, dou o azar de aportar no Iêmen. Um país em guerra civil brutal há sete anos, que opõe rebeldes de causas obscuras a uma coalização militar liderada pela Arábia Saudita. Nessa nação destroçada e miserável do Oriente Médio, crianças vulneráveis como a nossa pequena ancestral também vivem o horror, o horror.>
Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, com base em dados do Unicef, a guerra do Iêmen já deixou mais de 10 mil crianças mortas ou mutiladas. Outras 11 milhões precisam de ajuda humanitária, 2 milhões estão fora da escola e 400 mil sofrem de má nutrição severa. Esse é o cenário em novembro de 2021, segundo milênio, provocado pelo Homo Sapiens contra seres da sua espécie. Em vez dos leões, as balas. Em vez do breu, o clarão dos torpedos.>
O que os pesquisadores encontrarão daqui a 250 mil anos? Milhares de Letis enterradas com crânios destroçados por fuzis? Onde foram parar seus braços e suas pernas, pensarão. Qual será o nosso legado, para além dos escombros do que um dia foram cidades como Veneza, Tóquio ou Rio de Janeiro? Como numa canção de Chico Buarque, que escafandristas virão explorar nossas casas, nossos quartos, nossa alma? Que sábios em vão tentarão decifrar o eco de antigos temores, fragmentos de dores e de perdas, vestígios de uma estranha civilização?>
Passaram-se 250 mil anos e o medo primordial permanece. O frio na espinha, os sentidos em alerta permanente, a tensão que não se dissipa. Nascemos, crescemos, procriamos, erguemos e destruímos sob o signo do medo. Com ele prosseguimos, ou ao menos tentamos. Como Leti, como os Homo Naledi, os Homo Erectus, os Neandertais, os Sapiens que vieram antes de nós. Como os que virão depois do nosso esquecimento.>