Rainha do cangaço, baiana liderou grupo maior que o de Lampião para matar ‘Rabudos’

Anésia Cauaçu é única mulher da história a comandar bando de cangaceiros

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  • Gabriel Moura

Publicado em 14 de abril de 2024 às 05:00

Anésia Cauaçu
Anésia Cauaçu Crédito: Arte Quintino Andrade

A 8 mil quilômetros da italiana Verona, a pacata Ituaçu, na Chapada Diamantina, vivia no início do século 20 uma versão sertanista do embate ‘Montéquios x Capuletos’, com a família Gondim, apelidada de “Mocó”, disputando a hegemonia política e econômica com os Silvas, conhecidos como “Rabudos”. A fiel da balança desta rixa foi uma personagem que nem Shakespeare seria capaz de conceber: uma mulher que liderava um bando de 100 cangaceiros.

Anésia Cauaçu era a melhor atiradora da região, capaz de tirar o cigarro da boca de um fumante sem a bala resvalar nos lábios. Era parceira de copo, a única a virar shots de pinga acompanhando marmanjos no bar. Era pioneira na moda, a primeira mulher da cidade a vestir calça. Mas antes do cangaço não era nada disso.

Nascida em Jequié, na década de 1890, ela era mais uma das donas de casa da cidade, destoando das outras na missa de domingo apenas pelos olhos azuis que ostentava. Vivia vida de camponesa na Fazenda Fedegoso ao lado do marido e filha, honrando o legado da família de agricultores e comerciantes de onde descendera.

“Os relatos dizem que tratava-se de uma mulher bonita, alta, olhos azuis, pele clara, magra e com cintura de pilão, que adorava mexer enquanto dançava”, narra Domingos Ailton, jornalista e escritor do romance Anésia Cauaçu, que resgata a história da única mulher a liderar um bando de cangaceiros.

A mudança de arquétipo ocorreu após Augusto Cauaçu, primo de Anésia, ser morto por Zezinho dos Laços, um dos ‘Rabudos’. Zezinho ordenou que o jagunço preparasse uma emboscada contra os ‘Mocós’. Augusto recusou, então o coronel puxou o gatilho. Mais que isso, proibiu a família de sepultar cristianamente o rapaz.

Revoltados, os Cauaçus convocaram uma reunião de família onde foi decretada guerra contra os Silvas.

De ordinária a desordeira

Primeiro, uma visita espiritual a um preto velho chamado Heitor Gurunga, que recomendou esculpirem uma bala a partir do chifre esquerdo retirado de um boi. Este projétil, futuramente, teria sido o responsável por ceifar a vida de Zezinho.

Em seguida, inciaram o treinamento. Patrocinados pelo coronel Bernardino das Caraíbas, um Mocó, eles ‘importaram’ um jagunço da cidade de Macaúbas, que ensinou os ensinou a atirar. Durante as aulas, Anésia foi a que mais se destacou.

Surgia a “Conflagração Sertaneja”, nome do bando que, além dos Cauaçus, reunia outros baianos que tiveram terras roubadas ou familiares mortos pelos Rabudos. No comando, Anésia.

Em 1905, Zezinho foi morto, mas as ações seguiram pelos anos seguintes nas cercanias entre Jequié e Ituaçu. O foco era assassinar os rivais e boicotar suas ambições políticas. “Roubos e outros crimes comuns eram proibidos. Apenas dois irmãos enveredaram para esse lado e precisaram abandonar o bando, migrando sua área de atuação para o Sul da Bahia”, ressalta Domingos Ailton.

Caça

Após os primeiros anos de disputa, os Silvas notaram que seu exército de jagunços não seria páreo para os cangaceiros. A família, então, solicitou reforço a Salvador, que enviou três levas de policiais, algumas com mais de 250 homens. Todas derrotadas.

Além disso, a perseguição aumentou ainda mais a popularidade do grupo. Os militares invadiam as casas de supostos informantes de Anésia, deixando um rastro de agressões, estupros e até assassinatos de crianças – jogavam os menores para cima e deixavam-os cair em cima das lâminas afiadas de baionetas.

Crescia também a lenda de Anésia. Certa vez, um tenente chamado Etelvino teria avistado a cangaceira, que desferiu o tiro certeiro no indicador do militar, impossibilitando-o de apontar a direção da fugitiva. Outro mito narra que a moça “invurtava” – ou seja: desaparecia ou transformava-se em algum objeto, impedindo-a de ser pega.

Verídico é o impacto cultural da revolucionária. Ela era mestre em capoeira e montava o cavalo “de frente”, diferente das outras mulheres da época. Na casa dela, quem ficava recluso tomando conta da filha era o marido, Afonso, que recusou filiar-se à Conflagração.

“Ela é a Rainha do Cangaço. Muito se fala de Maria Bonita e Dadá, mas elas tinham notoriedade herdada dos maridos Lampião e Corisco. Anésia não, ela era a líder. O único caso conhecido de uma mulher comandando cangaceiros. Mais que isso: o grupo de Lampião tinha algumas dezenas de combatentes. O dela superava 100”, exalta Domingos.

Cauaçu acabou presa em 1916, após o dono de uma fazenda dedurá-la em troca da recompensa. Deixou o xilindró menos de um ano depois, mas já “aposentada”. O último relato dela data da década de 30, quando foi avistada em Ilhéus. Não se sabe quando morreu, mas há teses defendendo que viveu até 1987, quando teria falecido já como anciã aos 93 anos.

Enquanto isso, o resto do bando se dispersou, com alguns migrando para Minas Gerais e outros tentando a sorte no Sul do estado.

Já a saga dos Mocós e Rabudos terminou com ambas as famílias atrás das grades, capturados a mando de apoiadores de Getúlio Vargas após a instalação do Estado Novo, em 1937.