Uma cidade filha das águas

Por Milton Moura

Publicado em 1 de abril de 2024 às 16:05

No dizer de jornalistas e políticos, Salvador é “a primeira capital do Brasil”. Sim, foi criada para ser “a cabeça do Estado do Brasil”, porém... é muito mais. Um dos umbigos do mundo entre os séculos XVII e XIX. A Baía recebeu, acolhendo e repelindo, povos muito diferentes entre si. Kirimurê era navegada por canoas de formato e dinâmica que atestam o conhecimento acurado que têm os Tupinambá do regime dos ventos e marés, além da textura dos troncos de grandes arvores.

O nome Bahia, estabelecido por antonomásia, sinaliza as contorções de um ventre múltiplo. Tudo que de relevante aqui se dava ia e vinha pelo mar. Marujos lusitanos, galegos, holandeses, indianos, italianos passavam por essas águas, como nos transatlânticos de hoje os turistas. Todo grão ou tijolo de açúcar, todo fumo ou amêndoa de cacau saiu pelo mar. As modas portuguesas e orientais também assim vieram, como a manga, o mamão, a banana e muito mais do Oriente. Pelo mar foram a mandioca, o fumo e a cachaça para África, e de África veio pelo mar o azeite de dendê. Uma frase de Caetano me deu uma chave para me situar nesta dinâmica: “o povo negro entendeu que o grande vencedor se ergue além da dor”.

Comecei a compreender alguma coisa desta cidade através de Jorge e Dorival. Um noite, vendo um espetáculo do Grupo Oxum no Teatro Castro Alves, fiquei maravilhado com sua dança e sua música. A fotografia de Verger e a aproximação com o Candomblé – no início, a casa de Menininha do Gantois – me envolveram com tanta beleza. Passei a perceber a música presente no falar e a dança, no andar das pessoas nos bairros populares. E muitas águas. Ribeira, Monte Serrat, Boa Viagem, Mares, Conceição, Barra, Ondina... são nomes líquidos salgados. Brotas, Barris, Tororó, Fonte Nova, Gravatá, Baluarte, Largo do Tanque, Rio Vermelho... conformam a toponímia líquida doce.

Mais tarde, indo e vindo muitas vezes a Itaparica, estive no meio da Baía. Vejo aí as embarcações de todos os tipos, desde o Paquete Voador de Gumercindo aos navios que vêm trazer e buscar mercadorias as mais diversas. E o velho Francisco exclamando: “Vejam! É Janaína.”

São magníficas as histórias do fundo da Baía. “Criei minhas filhas e formei elas todas levando manga, tamarindo e sapoti dos quintais daqui nos saveiros e no navio. Se mercava de um tudo e se trazia também. Era mais fácil do que hoje, pois tinha saveiro toda manhã prá ir e toda tarde prá voltar. Hoje, tem que ir pela BR”.

Foi decidida pelo mar a expulsão de militares, negociantes e governantes portugueses em 1823. O bloqueio pelo mar se somou àquele por terra. Assim, Maria Quitéria pelejou na Ilha de Maré e na Barra do Paraguaçu. E foi na beira da praia que Maria Felipa assombrou os marotos. Em um agosto passado, assistia eu à preparação de uma regata de circunavegação de Itaparica. Alguns pescadores vieram avisar que isso não se devia fazer com aquele vento de São Lourenço, pois os bancos de areia de Cacha Prego podiam estar mudando. Era o recurso de João das Botas e sua flotilha... Tudo está muito integrado na história desta cidade e da Baía.

O ferry-boat levou à rodoviarização da Ilha. Não há mais transporte direto entre Salvador e Itaparica, mesmo que o porto da Ponte Velha esteja perfeito. E restam poucos saveiros. O transporte marítimo se precarizou, penalizando o cotidiano de muitos milhares de pessoas. Agora vem a ponte e não sabemos como vai ser a capilaridade desse sistema. Generosa e bela, a Baía deseja participar dessas mudanças, não como suporte do concreto e das ferragens, mas como caminho de desenvolvimento e bem viver. Como será a vida de Salvador tendo que suportar tanta coisa que viria mais ainda pelo asfalto? A Bahia veria a Baía somente de cima? Salve esta cidade, minha Mãe, no dia de seu aniversário! Odoiá!