Para Tiganá Santana, Carnaval e Ilê Aiyê foram uma escola musical

Compositor fala sobre como a música da cidade influenciou suas criações

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  • Roberto Midlej

Publicado em 29 de março de 2024 às 16:00

Tiganá Santana tem 41 anos
Tiganá Santana tem 41 anos Crédito: José de Holanda/divulgação

Nascido em Salvador em 29 de dezembro de 1982, o cantor, compositor e instrumentista Tiganá Santana não se identifica muito com o lado “festeiro” da cidade: “Não me identifico muito com a grande extroversão imputada à imagem da cidade – principalmente no período do Verão”, diz o artista. No entanto, isso não o afastou do convívio com a música que se ouve na cidade.

Nunca foi um frequentador habitual do Carnaval, mas, ainda assim, durante a festa, abria uma exceção para o Ilê Aiyê, entidade que contribuiu para sua formação intelectual. Na infância e na adolescência, ia às reuniões do bloco na companhia dos pais. “O Ilê Aiyê fez parte da minha formação. Eu não gostava da multidão, mas, para mim, [o que importava] não era a festa”, revela Tiganá.

Profundamente influenciado pela sonoridade afro, o compositor também teve sua identidade musical formada graças aos terreiros de Candomblé que frequentou em Salvador: “Sem dúvida, fui atravessado pelo complexo de frequências geradas pelos corpos, atabaques, agogôs, caxixis, adjás, vozes, pés no chão e sons das entidades espirituais incorporadas. Frequentei muitos terreiros na cidade”, reconhece Tiganá. “Se a música brasileira é ampla e profundamente afrorreferente, a soteropolitana é necessariamente [afrorreferente]. A presença do Candomblé, em suas variadas linhagens, nesse contexto e sentido, é um fato”, defende.

Criado em um ambiente musical - o avô, de 99 anos, é saxofonista e clarinetista, e foram os tios que lhe apresentaram o violão -, Tiganá começou a tocar aos 14 anos e já naquela época começou a compor. Em 2009, aos 27 anos, lançou seu primeiro álbum, Maçalê, com composições próprias, incluindo algumas em idiomas africanos. De lá para cá, foram outros cinco álbuns, sendo alguns deles em parceria com artistas da África, como Tempo & Magma, de 2015, quando se juntou a colegas de Senegal, Guiné-Conacri e Mali.

Nesta entrevista, Tiganá fala sobre como a música que se ouve em Salvador está presente em sua trajetória e como ela contribuiu para sua formação artística e intelectual.

Como era seu convívio com a música em Salvador na infância e adolescência? Frequentava shows e ambientes musicais?

A partir da adolescência, comecei a frequentar shows pouco a pouco. Já antes disso, a minha memória remonta sempre aos ambientes musicais que eu vivenciei nos círculos familiares – desde o meu avô, que está prestes a completar 99 anos e é saxofonista, clarinetista e marceneiro, até tios que me apresentaram o violão e o cancioneiro popular brasileiro, inicialmente -, como também nos candomblés, no Ilê Aiyê e na capoeira, em que comecei a cantar, ainda criança, com voz própria belas ladainhas ensinadas por meu pai.

A sua música é muito influenciada pelas religiões de matriz africana? E como vê a presença do candomblé na música produzida em Salvador?

"A minha música é influenciada por tudo o que me atravessa. É, de modo tanto direto quanto indireto, uma tradução do que vivo"

Tiganá Santana
Cantor e compositor

O Candomblé fez parte da minha formação, pois me situa cultural e existencialmente desde a minha infância. Sem dúvida, portanto, o que o Candomblé é, para mim, não somente, enquanto manifestação estética, mas como perspectiva, interpretação possível de mundo faz-se presente na música que consigo alcançar como realização. E claro que, quando nos referimos a religiões de matrizes africanas, especificamente, ao Candomblé, no caso de Salvador, é incontornável assinalarmos a sua presença constitutiva nas manifestações artísticas as mais diversas. Se a música brasileira é ampla e profundamente afrorreferente, a soteropolitana é necessariamente.

A presença do Candomblé, em suas variadas linhagens, nesse contexto e sentido, é um fato. Essa presença dá-se na criação do próprio desenho musical de Salvador e do Recôncavo da Bahia (há muito tempo), como também na resposta corporal, de imaginário, de inteligência, de sonho a essa presença. Não é tão somente a identificação da presença do tambor e da musicalidade circular nos sons de Salvador, mas é, igualmente, a identificação de um modo de pensar/viver o mundo que se expressa no que pode ser ouvido e visto nas rodas de Candomblé. É importante salientar aqui que não se trata da essencialização de uma maneira soteropolitana de interpretar o mundo, mas de um conjunto de experiências responsivo à história e aos seus corpos, às linguagens, à topografia e às territorialidades, à política, à economia etc.

Você frequentou terreiros de candomblé na cidade? O som daqueles lugares lhe chamava a atenção desde que começou a frequentá-los? Observava a música produzida ali?

Sem dúvida, fui atravessado pelo complexo de frequências geradas pelos corpos, atabaques, agogôs, caxixis, adjás, vozes, pés no chão e sons das entidades espirituais incorporadas. Frequentei muitos terreiros na cidade (hoje frequento menos do que antes). O que ocorria, na minha percepção, não me permitia destacar a música dos outros fenômenos. Aprendi já que essa divisão em disciplinas, linguagens ou áreas não correspondia àquele complexo acontecimento. Então, eu observava o que acontecia ali, incluindo-se o que talvez um certo ocidente nomeie isoladamente como música. A música era o cântico e era o inquice, o vodum, o orixá, o caboclo. A música era a comida oferendada e era o sacudimento com folhas de S.Gonçalinho ao final da festa para Tempo. Era a minha própria fabulação em relação à vida e à morte a partir dali; era a minha vontade de caminhar depois do abraço recebido no terreiro.

Embora você reconheça a influência do candomblé na sua música, não costuma usar cânticos religiosos em suas canções. No entanto, costumamos ouvir nas festas de Salvador, especialmente no Carnaval, músicas que usam esses cânticos ou são inspirados neles. Você concorda com esse uso?

Eu nem sei mais o que dizer a esse respeito, porque me parece haver uma configuração um pouco diferente ultimamente. O mais grave é um país inteiro que se torna neopentecostal e violento em relação a muitas de suas referências fundamentais, o que inclui uma dimensão cosmológica informada pelas religiões de matrizes africanas. Não tenho percebido, no Carnaval, em específico, a apropriação dos cânticos religiosos do Candomblé como uma questão, por ora, mais dura de encarar. 

"Contudo, na Festa de Yemanjá, se falamos em festa popular de grandes proporções (e esta é a única que carrega o nome e a devoção a um orixá), tem havido uma apropriação de uma classe média branca, que não se coloca contra o racismo religioso a atingir direta e preferencialmente as religiões de matrizes africanas. Isso é gravíssimo."

Tiganá Santana
cantor e compositor

Não precisamos da relação de recebimento de “serviços” das entidades religiosas negras, ou da leitura poética da “rainha do mar”, ou da leitura científica (participativa) do fenômeno do 2 de fevereiro, ou mesmo da interpretação de ser esse um bom acontecimento para boas imagens nas redes sociais, quando não há nada, por parte desses agentes, direcionado à transformação efetiva da realidade brutal em que estamos.

Você já viveu além de Salvador, no Senegal (na cidade de Toubab Dialaw) e São Paulo. A presença da música em outros locais que você viveu/vive é tão marcante quanto na capital baiana?

Acho que a música que vivo mora na minha cabeça. Embora a cabeça esteja em formação - espero que até o fim da vida -, foi em Salvador que ela surgiu e se ergueu. As marcas daqui [de Salvador] são as maiores e mais importantes, com certeza.

Na Enciclopédia Itaú Cultural, um texto afirma que ‘sua obra convida ao movimento, ao transe e à delicadeza’. Como conseguiu encontrar ‘delicadeza’ em sua produção musical, vivendo numa cidade festiva e festeira como Salvador?

A obra artística é uma invenção do artista, em que pese o fato de ser também fruto do que não é exclusivamente o artista que concebe. Na minha invenção, não estou bem certo, parece haver mais celebração que festa e parece haver mais silêncio de onde parte o som do que som que faz música.

Você, ao menos aparentemente, é uma pessoa introspectiva e reservada. Se isso é mesmo verdade, como era para você viver numa cidade agitada e tão identificada com as festas populares? O que costumava fazer na cidade para se divertir?

Não me identifico muito com a grande extroversão imputada à imagem da cidade – principalmente no período do Verão (mas não só). Nesses últimos dois anos, participei do Carnaval, depois de um hiato de mais de uma década, motivado por uma atmosfera pós-pandêmica e pós-fascista. Fui e me diverti. Mas, de fato, não sou festeiro; não é o meu movimento mais orgânico ir a grandes eventos.

Quando criança e adolescente, participava do Carnaval levado por meus pais, sobretudo, ao Ilê Aiyê, que, como disse, fez parte da minha formação. Eu não gostava da multidão, mas, para mim, não era a festa. Era a escola, eram as pessoas mais velhas que encontrava, era o aprendizado do tempo por meio da batida dos tambores, o aprendizado dos passos, a escuta dos nomes de Zumbi, Rainha Nzinga, Mãe Hilda. A minha relação com a minha agitada cidade, que me fez vagaroso e reservado, é ser cada vez mais quem sou, principalmente, diante dela; uma mãe - que não precisa se assemelhar ao filho - merece dele, no mínimo, autenticidade.

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