Como ambição e ousadia artística fazem do pagodão o som mais ouvido de Salvador

Gênero soteropolitano consegue se renovar musicalmente e não para de criar novas estrelas, movido por uma fórmula que faz sucesso nas periferias

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  • Fernanda Santana

Publicado em 29 de março de 2024 às 11:00

Tony Salles, estrela do pagode baiano, percorreu longo caminho até o estrelato Crédito: Ana Albuquerque

Vestido com o figurino clássico do pagodeiro baiano, Sérgio Login, 32 anos, esperava sua vez de cantar na orla de São Tomé de Paripe. O calor encharcava a camiseta dele e derretia a maquiagem dos homens travestidos de mulheres no bloco previsto para aquela tarde. O caminho rumo ao estrelato exige suor e passa por aquela região, a meca do pagode baiano.

De bairros periféricos e favelas de Salvador, saem os maiores nomes desse gênero, que domina o mercado musical regido por uma fórmula que combina ousadia rítmica e fome de futuro. Quem convence o público em eventos como aquele do último dia 10 de março tem chance de furar a bolha. Talvez consiga até chegar aos ouvidos certos de um empresário.

Foi assim que aconteceu no passado. Léo Santana veio de Boa Vista do Lobato, Tony Salles cresceu em Periperi. Antes, nos anos 90, despontaram É O Tchan, com integrantes do bairro da Liberdade. Depois, o Harmonia do Samba apareceu em Boa Vista de São Caetano e ganhou o país, em 1998, com Xanddy nos vocais.

“Sempre que subo no palco, em um trio, é mais uma realização de um sonho. Quando me falam de pagode, me vem aqui o Subúrbio, vem Cidade Baixa, de onde saiu muita gente”, disse Sérgio, uma das três atrações da festa lotada de pré-carnaval em São Tomé, com boné na cabeça e corrente dourada no pescoço.

Da nova geração, surgem nomes de regiões como Valéria, Tancredo Neves e Cajazeiras. Diferentemente das estrelas que hoje vivem no luxo, com carros importados na garagem e agenda lotada, eles têm a ajuda de amigos, vizinhos, editais e vereadores interessados em votos nas comunidades para fazer acontecer.

Sérgio Login, cantor de pagode baiano Crédito: Lane Silva/FGM

As novas estrelas batem à porta

Enquanto o bloco As Putianes chegava ao fim em São Tomé de Paripe, Oh Polêmico, 25, comandava uma festa arrastão no outro lado da cidade — no bairro de São Cristóvão. De cima do trio, ele conduzia centenas de pessoas. Entre elas, uma chamou a atenção dele.

Era um garoto que insistia para dar uma canjinha. Oh Menor, o jovem em questão, conseguiu os holofotes depois de alguns acenos lá debaixo. “É fundamental dar oportunidade, isso fortalece o nosso pagodão”, afirmou Deivisson Nascimento, nome civil de Oh Polêmico.

Nas periferias, as bandas e artistas de pagode se nutrem e se projetam dessa intimidade entre gente, música e sonho. O gênero é o que toca nas festas e nos paredões, eventos que juntam multidões em torno de caixas de som nas alturas e ditam o que será ouvido.

Oficialmente, eles são proibidos por desrespeitar os limites de som, segundo a Prefeitura de Salvador. O que não muda nada. Os pagodeiros até produzem músicas específicas, em geral com graves bem marcados e letras +18, para paredões.

Nos tocadores digitais e redes sociais, o pagode, que fora da Bahia ainda é confundido com a axé music, já ultrapassou até essa cena musical que surgiu nos anos 80. No Tiktok, a #pagode foi usada em 794 mil vídeos. A #axé aparece sete vezes menos.

Nas ruas, essa prevalência musical também pode ser medida - e ouvida. No último Carnaval de Salvador, o pagode embalou as duas apostas de música para a folia: Macetando, de Ivete Sangalo, e Perna Bamba, parceria de Léo Santana com Tony Salles. 

“O pagode ainda é criticado, mas a orla está abraçando, é importante”, avalia Oh Polêmico, que acende uma vela para os paredões e outra para as festas mais pasteurizadas.

A efervescência cultural e a espontaneidade artística das periferias, tantas vezes sem o devido apoio, são o combustível musical do pagode. O samba chula, o samba duro que toca nas festas juninas (o samba junino) e o samba reggae saíram dessas regiões. E possibilitaram o pagode.

“Existem lugares em que o volume e as letras de algumas letras perturbam. Já vindo para o lado artístico, é uma sonoridade que dialoga, cria um ânimo”, pondera Tonho Matéria, que compôs “Melô do Tchaco”, em 1994, primeiro sucesso nacional do pagode soteropolitano.

Oh Polêmico, cantor da nova geração do pagode Crédito: Alfredo Filho/SECOM

Todo esse cenário forjou Oh Polêmico, ainda Deivisson, na música. Estudante de uma escola pública de Tancredo Neves, participou dos primeiros projetos musicais. Antes de decolar na carreira, ralou como ambulante, estoquista e caseiro.

“Foi suado, mas sabia que ia chegar a hora. A gente que vem do pagode quer crescer”, comemora ele, hoje morador de um condomínio de casas luxosas da cidade.

O sonho de viver do pagode recria uma versão da Cinderela nas periferias - como acontece com o futebol. Depois de dez anos entre a bola e a música, Sérgio se decidiu.

Começou sozinho, até ser convidado para uma banda de Valéria, onde mora. “Só que eu fazia tudo sozinho, aí criei minha banda”, lembra ele, que convidou amigos para a Groove de Rua.

Foi o auge de bandas soteropolitanas de pagode, nos anos 90, que fez jovens sonharem em ser como aqueles caras que apareciam na televisão o tempo todo.

É O Tchan, nos anos 90, projetou pagode baiano
É O Tchan, nos anos 90, projetou pagode baiano Crédito: Foto: Divulgação

A primeira referência foi o É O Tchan, seguido pelo Terra Samba e Companhia do Pagode. Todos venderam centenas de milhares de CDs no Brasil. O Harmonia do Samba, nos anos 2000, consolida esse sucesso. Qualquer garoto queria ser como Xanddy.

Mentor da própria carreira, vacinado contra as ilusões infantis, Sérgio busca um empresário. Ele, às vezes, faz bicos para fechar as contas.

Xandy inaugurou nova era no pagode baiano
Xandy inaugurou nova era no pagode baiano Crédito: Nara Gentil/CORREIO

Não é raro que essas necessidades cotidianas se sobreponham a alguns deveres musicais, como os ensaios.

Durante duas semanas, por exemplo, os integrantes da Groove de Rua tentaram ajustar as agendas para ensaiar. Não conseguiram.

Garimpar os talentos entre a massa de artistas que mira o estrelato no pagode é, de fato, um dos trabalhos mais complexos para os produtores, reconhece Fernando Cirillo.

O produtor da A5 Produções, que agencia 11 pagodeiros, afirma que a equipe chega aos talentos de duas formas: pelas redes sociais ou por recomendação de conhecidos que vivem em periferias e estão atentos aos movimentos musiciais locais.

Localizada "a joia bruta, é necessária a lapidação, com aulas de canto e sessões de fono". "E investimento, principalmente hoje", destaca o produtor, sem estimar valores.

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Sérgio Login criou banda de pagode Groove de Rua Crédito: Paula Fróes/CORREIO

A nova onda do pagodão 

O estúdio Mark Fummer, localizado no segundo andar de um prédio residencial em Periperi, é um dos points de para iniciantes e veteranos do pagode ensaiarem.

O negócio, que movimenta a Rua Nova Brasília, leva o nome do cantor, produtor e empresário conhecido como Marquete. Na aparência, ele lembra o sambista Riachão.

Citado por músicos como generoso, "uma figura", Marquete já foi passado para trás por essa qualidade. Pesa também o fato de ele ser avesso a burocracias e planilhas.

Já da parte musical, ele está colado — inclusive, fisicamente, porque mora no próprio prédio do estúdio.

“Aqui é um celeiro musical. Todos que estão ‘batendo’ passaram aqui. Oh Kanalha, Hiago Danadinho, e outros mais”, enumera. Faltou o nome de quem viraria um dos símbolos do pagode.

O faz tudo do pagode conheceu Tony Salles, hoje aos 42, quando ele era um adolescente, sempre em busca de uma chance para subir em palcos montados no bairro. Na época, o cantor era integrante de uma banda de Periperi, a Só Prazer. 

Mark e Tony Salles, amigos de Periperi, por volta de 2010 Crédito: Acervo Pessoal/Mark Fummer

Tony não esquece esses dias de busca pelo estrelato. Queria ser cantor de pagode desde pequeno, sobretudo depois de ouvir Gera Samba (nome antigo do É o Tchan).

"O pagode consegue, musicalmente falando, se conectar com o povão. Escolhi o pagode porque era o que mais mexia comigo, que eu conseguia passar minha verdade", conta Tony, que tem 11 shows previstos para abril como vocalista do Parangolé. Em seguida, seguirá carreira solo.

O cantor faz parte da segunda geração musical do pagode: no início dos anos 2000, ele fica mais acelerado, com mais letras de crítica social e duplo sentido. É quando ele vira o “pagodão”, nome próprio de um som tipicamente de Salvador.

​'Perna Bamba' Tony Salles é convidado de Léo Santana no Pipoco
​'Perna Bamba': pagode de Tony Salles e Léo Santana foi a 'música do carnaval' Crédito: Divulgação

Os principais símbolos são Harmonia do Samba, Psirico, Fantasmão, Pagodart e Parangolé. Isso não significa que as referências não dialoguem. O que, inclusive, mostra a capacidade de renovação do gênero. 

"Existe uma grande diversidade musical dentro do pagodão. Se estivermos atentos a esses detalhes, sempre iremos furar a bolha", acredita Tony, que lançou com Léo Santana a "música do carnaval" de 2024 - Perna Bamba.

A reportagem tentou entrevistar Léo, o protagonista nacional dessa cena, mas não teve retorno.

No nome artístico, Léo e Tony destoam de uma nova tendência. Artisticamente, artistas têm investido em apelidos que, de alguma forma, traduzam suas personalidades. Ou que os representem na cena.

Oh Polêmico, por exemplo, era meio enfezado nos babas com amigos. Daí o vulgo. "Mas não sou polêmico, ri. 

Os novos nomes seguem a nova atualização do gênero. Iniciada na última década, com representantes como Attoxxa, há ainda mais presença dos elementos eletrônicos, funk e trap - dessa fusão vem o pagotrap.

“Foi o nome achado para essas referências, não quer dizer que é trap”, atenta Diggo, cantor dessa geração.

Mulheres tentam furar bolha masculina

A Dama, cantora de 24 anos que se tornou a principal representante feminina do pagode baiano, estreou na cena como a maioria das mulheres. Era a dançarina. Depois, virou segunda voz de bandas.

“Ainda é difícil ter uma agenda como a de um homem. Há falta de oportunidade”, avalia Allana Sara, mulher por trás do apelido, que aposta no groove eletrônico, seja ele definido como pagodão ou pagotrap.

Foi ela a primeira pagodeira a cantar no Salvador Fest, o principal evento do gênero em Salvador. Nas letras, elas têm até aparecido mais.

Alana Sarah, A Dama, trouxe protagonismo feminino ao pagode
Alana Sarah, A Dama, trouxe protagonismo feminino ao pagode Crédito: Foto: Reprodução

Uns insistem na sexualização. Outros, em uma mea culpa ou por compreender o cenário, apostam na alegoria da “mulher empoderada”. A Groove de Rua trabalha na música “Cabelo Black”, que exalta mulheres pretas .

A última semana foi decisiva para a banda, contemplada por um edital municipal. No último sábado (23), ela tocou no Festival Boca de Brasa, no Espaço Cultural da Barroquinha. ”Estava realizando mais um sonho”, diz Sérgio.

O próximo é cantar no Carnaval de Salvador. O palco da axé já foi apossado pelo pagodão, que não se contenta como coadjuvante.

O projeto especial Som Salvador é uma realização do Jornal Correio, com patrocínio da Unipar, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Wilson Sons e Salvador Shopping.