Gênio reprovado e criação polêmica: conheça bastidores da Escola de Música da Ufba

Instituição badalada na década de 1960 que movimentou o cenário cultural do país completa 70 anos

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  • Carolina Cerqueira

Publicado em 29 de março de 2024 às 11:00

Escola de Música da Ufba completa 70 anos
Aluno ensaia no piano da Escola de Música da Ufba mesmo durante as férias da faculdade Crédito: Marina Silva/CORREIO

A cada passo, os barulhos dos carros na Avenida Araújo Pinho, no Canela, vão dando lugar a uma sinfonia. Mas não no seu sentido mais conhecido, puxado para a música clássica. No original mesmo: “mistura de diferentes sons instrumentais”. Numa sala, um aluno pratica o piano; na outra, um professor com a sua flauta faz um dueto com uma aluna de arpa. Na área de convivência em que os estudantes se reúnem, que leva o nome de Praça Professor Horst Karl Schwebel, uma aluna puxa “Força Estranha”, de Caetano Veloso, na voz, e um aluno improvisa no violão para acompanhá-la.

Esse é o dia a dia da Escola de Música da Ufba (Emus), criada em 1954 como a primeira escola de música de nível superior do país. Movimentando o cenário cultural brasileiro e conquistando prestígio internacional, se tornou a mais badalada dos anos 1960. Foi por esse cenário de bastidores de grandes espetáculos musicais que passaram gênios como os suíços Walter Smetak e Ernst Widmer, e ainda o alemão Horst Schwebel e o italiano Piero Bastianelli.

O sobrenome Smetak talvez seja o mais fácil de reconhecer. O suíço em questão é avô da jornalista baiana Jéssica Smetak, apresentadora da TV Record. Walter saiu da Europa e adotou o Brasil como casa, assim como os outros gênios citados, a pedido de um homem que, dividindo opiniões, marcou a história da Bahia: Edgar Santos. Primeiro reitor da história da Ufba, foi dele a iniciativa de criar a Emus.

Quadro de diretos da Emus mostra  e Widmer (da esquerda para a direita) na linha superior
Quadro de diretores da Emus mostra  Koellreutter e Widmer (da esquerda para a direita) na linha superior Crédito: Marina Silva/CORREIO

‘Abaixo às bichas do reitor!’

“O reitor disse: ‘Koellreutter, você vai fazer a escola de música que você quiser’. O resultado foi algo muito sofisticado, um verdadeiro mundo de luxo do ponto de vista cultural; um centro de cultura do Brasil”, conta o músico Tom Zé, de 87 anos, que foi aluno da Emus. O sobrenome complicado citado é de Hans Joachim, um compositor alemão que veio para o Brasil exilado durante a Segunda Guerra Mundial por ter casado com uma judia e sido denunciado à Gestapo. Ele se tornou o primeiro diretor da Escola.

Concerto dos Seminários Livres de Música
Concerto dos Seminários Livres de Música Crédito: Divulgação/Emus

O “mundo de luxo”, somado à fundação das escolas de dança e de teatro, desagradou uma parte dos estudantes, principalmente os das engenharias, como conta Tom Zé: “Faziam passeatas na porta da reitoria”. O antropólogo e historiador Antônio Risério, no documentário “A Última Vanguarda” (2022), complementa: “Tinha um movimento preconceituoso de ‘abaixo às bichas do reitor’, se referindo ao povo de dança, de música e de teatro, que era visto como afeminado”.

Edgar seguiu em frente - contam até que acenava para os alunos manifestantes na porta da reitoria. “Ele dizia: ‘Eu faço um hospital em quatro anos e tenho duas linhas no Jornal do Brasil. Eu faço um Madrigal em quatro meses e tenho uma página inteira”, lembra Antônio Risério, que ainda destaca, na conta de Edgar, a criação da Escola de Enfermagem, Escola de Odontologia, Instituto de Física, Instituto de Matemática e outros. Edgar não resistiu à pressão. Depois de 15 anos na reitoria, foi retirado do cargo pelo Governo Federal em 1961. Morreu um ano depois, aos 68 anos - talvez de desgosto.

Irará, os cigarros e Caetano

O reitor se foi sem ter o privilégio de acompanhar a formação de um dos grandes nomes da música baiana. Foi justamente em 1962 que Tom Zé passou - em primeiro lugar, diga-se de passagem - no vestibular de Música. Vindo de Irará, conquistou os avaliadores com uma harmonia de João Gilberto que diz acreditar que nem mesmo eles saberiam executar.

Tom Zé conta que era um
Tom Zé conta que era um "CDF" e ficava das 7h às 22h na faculdade Crédito: Arquivo Pessoal

Durante o curso, sem grana para se bancar em Salvador, decidiu largar tudo e voltar para a cidade natal para trabalhar na loja do pai. Ernst Widmer, o suíço citado no início da reportagem, que na época era diretor, lhe arrumou então uma bolsa-auxílio. “Com ela eu pagava a pensão, o café da manhã e o cigarro que eu fumava naquele tempo”, compartilha, bem-humorado.

Depois de formado, foi professor de Contraponto e Harmonia na própria Emus, até a chegada de uma polêmica, sobre a qual ele fala, mas se esquiva de detalhes. “Um dia, nesses contratempos que existem de um fulano ser influente e querer colocar sicrano num lugar, saiu uma notícia de que eu chegava na sala de aula vestindo a calça e abotoando a camisa. Eu cheguei para Widmer e disse que estava entregando minhas contas, então fiquei sem trabalho”, relata.

“Me bati com Caetano [Veloso] e contei que estava enrolado. Ele me disse: ‘Lá em São Paulo você pode até se enrolar também, mas vai ter oportunidades de desenrolar’”, completa. Tom Zé pegou o dinheiro que tinha em mãos e embarcou com Caetano rumo à selva de pedras para, junto com Gil, Gal, Bethânia e outros nomes, fazer nascer o movimento tropicalista.

Um gênio barrado

Enquanto Tom Zé passou em primeiro lugar no vestibular, Armandinho Macêdo, referência da guitarra baiana, foi reprovado. Você não leu errado. Mesmo já tendo na época três discos gravados, o cantor, compositor e instrumentista não agradou os avaliadores. Vale destacar que Armandinho aprendeu a tocar com o pai, que é ninguém menos do que Osmar Macedo, da dupla Dodô e Osmar, que fez nascer o trio elétrico.

Ele não lembra bem a data - diz que o ocorrido tem por volta de 40 anos -, mas não esquece do zero escrito no papel que recebeu. “Até tentei fazer com que me dessem mais uma chance, mas me mandaram voltar em outro ano”, diz Armandinho, que nunca voltou e até hoje diz que é um músico que não sabe música. Mas ele não precisou do diploma para alcançar o sucesso. Por ironia do destino, em 2023, aos 70 anos, recebeu da Ufba o título de Doutor Honoris Causa.

Armandinho Macedo em cerimônia de recebimento de Título de Doutor Honoris Causa da Ufba
Armandinho Macedo em cerimônia de recebimento de Título de Doutor Honoris Causa da Ufba Crédito: Ana Lúcia Albuquerque/CORREIO

O processo de aprovação na Emus é diferente dos demais. Não bastava passar no vestibular e, agora, não basta passar no Enem. O Exame Nacional do Ensino Médio é só a primeira fase. A segunda é um exame de aptidão, no qual o aluno precisa mostrar que tem talento ou, ao menos, potencial musical.

“Isso nos leva a cenários em que alunos com muito conhecimento não passam porque falham no instrumento, ou alunos muito bons no instrumento não passam porque falham nos conhecimentos. E é assim mesmo, não é uma formação profissionalizante, é um curso de nível superior que forma bacharéis em Música”, pontua José Maurício Valle Brandão, de 55 anos, ex-aluno e atual diretor da Emus.

José Maurício e Maria Thereza, diretor e vice-diretora da Emus
José Maurício e Maria Thereza, diretor e vice-diretora da Emus Crédito: Marina Silva/CORREIO

Os CDFs da Ufba

Para ser aprovado no exame de aptidão, Tom Zé conta que praticou muito e nem teve descanso depois. “Nós éramos os maiores CDFs do mundo. Eu acordava às 6h para acompanhar o ensaio da orquestra, ia para as aulas, almoçava no restaurante universitário, voltava para mais aulas, jantava no restaurante universitário e depois ficava estudando e treinando até as portas fecharem. Na verdade, até depois disso porque os alunos se juntavam e davam um extra para o porteiro ficar até às 22h”, lembra, aos risos.

A fama dos CDFs continuou ao longo dos anos. O músico João Liberato (filho do artista plástico e cineasta baiano Chico Liberato), de 45 anos, iniciou sua graduação na Emus em 1998 e conta que os alunos de Música eram “tão focados” que raramente interagiam com os demais estudantes, salvo nas aulas eletivas de canto e coral, que curiosamente atraíam o pessoal de Medicina, Odontologia e (se você lembra do início da reportagem, vai ficar surpreso) Engenharias.

João Liberato
João Liberato chegou à Emus aos 7 anos Crédito: Reprodução

“A formação musical exige muita dedicação; a gente fica fechado mesmo”, analisa Liberato. “Músico precisa dos momentos solitários. A gente tem que ser assim, se isolar um pouco para olhar para dentro de si mesmo e ouvir o que se toca. Muitas vezes meus colegas me chamavam para a praia nos domingos e eu não podia porque estava ensaiando”, acrescenta o também ex-aluno da Emus Tota Portela, de 61 anos.

Mais do que colegas

João Liberato chegou à Emus aos 7 anos, no curso de iniciação musical. Mas respirava o ar da Escola desde que nasceu. “Meu pai era uma pessoa sempre presente na Emus, dialogava com muitos professores e muitos deles iam sempre lá em casa para almoços e jantares. O que mais lembro foi Widmer, que fez a trilha sonora de um filme de meu pai de 1984 chamado Boi Aruá, o primeiro longa de animação do Norte e Nordeste”, conta. Para esse filme, Widmer compôs uma das suas obras mais importantes: Sertania.

“Me lembro de ter uns três anos e conviver com Widmer no sítio onde meus pais moram. Ele é aquele suíço alto e me conseguia as pitangas bem vermelhas que ficavam lá no alto das árvores do quintal que eu não alcançava”, acrescenta.

Quem também estendeu a relação musical para o lado pessoal foi a ex-aluna e ex-professora da Emus Carmen Mettig. Ela foi aluna de Widmer, que depois se tornou seu compadre. “Eu era muito amiga de Adriana, mulher dele. Quando Bárbara, filha deles, nasceu, me convidaram para ser a madrinha. Nossos filhos se juntavam lá em casa para terem aulas comigo. Era um barato!”, lembra ela, com carinho.

Para além da família Widmer, os Liberato também tinham forte laço com os Robatto. “Minha mãe era muito amiga da artista plástica Lia Robatto e o filho dela, Lucas, foi colega das minhas irmãs [Cândida e Ingra Liberato] antes mesmo de eu nascer e depois foi meu professor na Emus. Hoje, tenho um projeto com ele, o Quarteto de Flautas da Bahia”, revela João.

Química musical

Em meio às conexões emocionais, estão paixões avassaladoras. O amor, inspirador de tantas canções, não ganha apenas uma nota na Emus, vira um dueto. O duo “Teca e Toca” já tem 40 anos. Maria Thereza Gondim, de 58 anos, e Tota Portela se conheceram quando ainda eram alunos do Colégio Antônio Vieira. Ele tinha 18 e ela 15. Mas só quando começaram a tocar juntos, quando ele, já como ex-aluno, voltava para se apresentar na escola, veio a paixão. “Uma química musical”, define Tota.

Teca e Tota estudaram juntos na Emus e hoje fazem um duo de piano e flauta
Teca e Tota estudaram juntos na Emus e hoje fazem um duo de piano e flauta Crédito: Arquivo Pessoal

Os dois passaram a se encontrar nos concertos na reitoria e outros eventos de música pela cidade. Até chegaram a tocar em uma banda com outros colegas do Vieira. E então os dois chegaram à Emus. O tempo foi passando, o amor aumentando e eles se casaram em 1990. Hoje, a pianista é vice-diretora da Escola e, o flautista, músico da Orquestra Sinfônica da Bahia (Osba). Nunca uma flauta e um piano fizeram uma harmonia tão perfeita quanto essa.

Os Sacramento

Nem só de amores conjugais vive a Emus. O amor entre pais e filhos domina os corredores da faculdade. É o caso de Aquim e Jorge Sacramento. Aquim começou a estudar percussão aos 9 anos, no Curso Básico da escola de Música, com o pai, Jorge, como professor. “Lembro de querer brincar, mas também de me dedicar muito porque já sabia que era aquilo que eu queria. Ser filho de um professor de lá me dava o privilégio de estar numa família onde a música era levada a sério, não era um hobby, era profissão”, analisa.

Aquim cresceu e, na adolescência, formou com seu pai o Duo Sacramento. Hoje, ele, aos 30 e Jorge, aos 58, dividem a condução do Grupo de Percussão da Ufba. “Juntamos professores e alunos para experimentarem sons, timbres e maneiras de compor. Fazemos um repertório contemporâneo que une os estilos erudito e popular”, explica Aquim. Alguns dos instrumentos presentes são Marimba, Vibrafone, Xilofone, Tímpano, Prato e Triângulo, além de instrumentos das tradições culturais afro-baianas, nordestinas e brasileiras, como Pandeiro, Zabumba, Timbal e Atabaque.

Aquim Sacramento chegou à Escola de Música aos 7 anos
Aquim Sacramento chegou à Escola de Música aos 7 anos Crédito: Reprodução

Sem parar no tempo

O Grupo é uma das provas dos discursos de professores, alunos e ex-alunos, que garantem que a Emus não parou no tempo e não ficou presa ao estilo erudita no qual nasceu mergulhada. “A Emus vem de mãos que não são da Bahia e nem do Brasil, nasce de uma cultura muito eurocêntrica, mas as pessoas de fora vieram com uma cabeça aberta a valorizar a cultura da Bahia, os ritmos e instrumentos afrobaianos”, avalia Aquim Sacramento.

Outra prova está na criação do curso superior de Música Popular, em 2002. “Nos anos 1990, tentei contribuir com a Emus para trazer recursos da Europa, onde eu estava estudando, mas sob a condição de que fosse criado o curso. Infelizmente, um incidente de curto-circuito no terceiro andar dificultou a defesa do projeto junto a financiadores europeus. Mas fiquei feliz em ver depois o curso implantado posteriormente e funcionando bem”, conta Ricardo Castro, de 59 anos, ex-aluno da Emus e maestro do Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (Neojiba).

O ex-aluno e atual professor de flauta da Emus Lucas Robatto, de 58 anos, era vice-diretor da Escola na época e acompanhou de perto a criação do curso. “Demorou para ser criado, mas um dos grandes desafios institucionais é mesmo acompanhar o que acontece fora dos muros da universidade porque as velocidades são diferentes”, pontua.

Lucas Robatto foi aluno da Emus e é atual professor da instituição
Lucas Robatto foi aluno da Emus e é atual professor da instituição Crédito: Reprodução

Prestígio e legado

Lucas defende que a Emus não para no tempo e, principalmente, não deixa a qualidade dos anos 1960 para trás. “Ingressei na Emus mas fui completar a minha graduação na Alemanha e os meus primeiros passos na Escola já foram suficientes para que eu chegasse lá fora e me sentisse muito à vontade. Eu cheguei a não precisar cursar certas disciplinas por conta do conhecimento que já tinha tido aqui”, lembra.

Tota Portela viveu algo parecido e concorda. “A Escola nasce com músicos extraordinários, que tinham uma outra visão de mundo, e chegaram para nos mostrar que nosso quintal vai além da cerca. Quando eu fui para os Estados Unidos, estava com medo do que iria encontrar, mas foi ali que eu me dei conta de que tinha tido uma formação de excelência. E é assim que o conhecimento vai passando de geração em geração e o legado fica, a qualidade fica e o futuro só tende a ser melhor ainda”, destaca.

Estrelas da Emus

Alguns dos outros grandes nomes não citados na reportagem que passaram pela Emus marcando sua história são: Lindembergue Cardoso, Paulo Gondim, Fred Dantas, Alfredo Moura, Paulo Costa Lima, Agnaldo Ribeiro, Esther Cardoso, Pierre Close, Manoel Veiga, Pitty e Klaus Haefele.

Aniversariante

Criada como Seminários Livres de Música em 1954, a Escola completa 70 anos no dia 15 de outubro de 2024. Para marcar a data, será realiza a 23ª edição do Seminário Internacional de Música, evento que reúne alunos, professores, pesquisadores e artistas de todo o mundo para divulgar a produção musical baiana.

O que a Emus oferece?

A Emus conta com os seguintes cursos de graduação: Canto Lírico, Composição e Regência, Instrumento, Licenciatura e Música Popular. Na pós-graduação, as cinco áreas ofertadas são Composição, Educação Musical, Etnomusicologia, Execução Musical e Musicologia Histórica.

Além dos muros da universidade

A Escola desenvolve programas desde a iniciação infanto-juvenil, passando pelo Curso Básico antes de chegar à graduação. Outros projetos fixos são a Orquestra Sinfônica da Ufba (com concertos realizados geralmente na Reitoria ou no Museu de Arte Sacra, com entrada livre) e o Madrigal (coral formado por funcionários e alunos bolsista da Emus).

O projeto especial Som Salvador é uma realização do Jornal Correio, com patrocínio da Unipar, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Wilson Sons e Salvador Shopping.