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Publicado em 28 de outubro de 2025 às 08:55
A fome tem um poder extraordinário sobre a nossa mente. As maiores convicções morais podem ceder diante da dor lancinante do estômago vazio. A falta de comida causa efeito semelhante ao causado em um dependente químico pela abstinência de uma droga poderosa. >
Pessoas buscam alimentos para sobreviver e entorpecentes para suportar as dores da vida. Não por acaso, pessoas que vivem realidades terríveis são mais propensas a usar drogas igualmente terríveis. Sem comida ou no desespero do vício, é reduzida ou até eliminada a capacidade de discernimento e autocontrole. Por isso, fome e dependência são causas de muitos crimes.>
Nesse quadro, um tipo de delito passou a chamar atenção, o furto de fios. A série “Vil Metal” produzida pela Globo destrinchou a realidade por trás do fenômeno. Pessoas extremamente pobres, muitas vezes em situação de rua, arrancam fios ou pedaços de torneiras que encontram, derretem o material em fogueiras embaixo de viadutos e acabam por vendê-lo ou trocá-lo. 1 Kg pode valer alguns reais, um prato de comida ou uma dose diária de crack. >
O Congresso Nacional apresentou uma solução pouco inteligente para a tragédia. Aprovou, em julho deste ano, uma lei que dobrou as penas previstas para o miserável, faminto ou dependente que furtar fios. Agora, o castigo pode chegar a 08 anos. >
Diante de um problema complexo, a classe política optou pela solução que mais gosta: bradar contra a impunidade, aumentar penas, tornar as prisões mais duras e, principalmente, deixar de enfrentar a verdadeira questão: como mudar a realidade em que seres humanos trocam fios de cobre pelos alimentos ou pelo crack considerados essenciais para sobreviver ou suportar a vida?>
Tem sido sempre assim desde a redemocratização. A cada problema, novas alterações no Código Penal, além da criação de leis esparsas, sempre buscando mais rigor e mais castigos. Em menos de 3 meses já foram aprovadas mais 3 leis penais, sempre no mesmo sentido. No entanto, até hoje não se ouviu falar em nenhuma diminuição significativa na quantidade de infrações ou na sensação de segurança após qualquer dessas leis.>
A irresponsabilidade com a qual se troca vidas por votos cria aberrações sistêmicas na lei penal. Em tese, o tamanho das penas deveria ser diretamente proporcional à importância do bem jurídico que protegem e inversamente proporcional aos estímulos e oportunidades que o Estado dá para cada pessoa se comportar adequadamente. Logo, seria de se esperar que as punições mais severas se dirigissem a quem comete crimes contra a humanidade, contra a democracia ou contra a vida. Por outro lado, aqueles que agem impelidos pelo desespero da fome deveriam receber mais apoio e menos sanções.>
Porém, com a recente alteração do nosso código penal, o pobre que furta fios agora comete um ato tão grave quanto o rico que trafica pessoas ou as escraviza. O miserável faminto terá a mesma sanção que o presidente, deputado ou general condenado por tentar abolir a democracia ou tentar aplicar um golpe de Estado. O dependente químico que dorme na rua é tão reprovado quanto aquele que integra ou financia organização criminosa. Todos esses crimes possuem agora exatamente a mesma pena máxima.>
É verdade que nos últimos meses integrantes do Congresso passaram a defender intensamente barreiras à persecução penal, perdões e reduções de penas. Contudo, a injustiça ou exagero que veem no sistema penal não se relaciona às prisões da miséria. Certamente, eles continuariam apoiando propostas para agravar a sentença de quem furta fios ou alimentos. O sentimento de “preocupação humanitária” que acaba de surgir se restringe a um público específico: eles mesmos. >
As únicas pautas dos parlamentares no sentido de refrear o ímpeto punitivo são: a) blindar os próprios deputados contra investigações penais; e b) garantir que os políticos que tentam dar golpes de Estado não sejam tratados com tanto rigor quanto aqueles que seriam os “bandidos de verdade”, ou seja, as pessoas famintas. >
Por incrível que pareça, exatamente ao mesmo tempo em que estabeleciam a pena de 08 anos para quem furta fio para trocar por comida, o congresso discutia apaixonadamente a anistia ou a redução da pena (idêntica) pela tentativa de golpe de Estado ou de abolição violenta da democracia. Aparentemente, parlamentares acreditam que a chave da pacificação do país está em prender os pobres famintos e perdoar os poderosos. Crimes motivados pela fome ou dependência química são tratados como mais reprováveis que aqueles motivados pela ganância e os projetos de poder. >
Afinal que valor teriam os votos de todos os brasileiros comparados a pedaços de metal arrancados na rua? Entre as poucas coisas que valem menos que 1 quilo de cobre derretido no nosso país estão a vontade popular e a vida de quem tem fome. Ao apresentar tais propostas, parlamentares deixam a democracia por um fio. E ainda dizem por aí que vil é o metal.>