Alaíde do Feijão foi protagonista de um verdadeiro consulado negro no Pelourinho

Cozinheira foi peça fundamental na criação de blocos afro como o Ilê Aiyê e referência para intelectuais, artistas; enterro acontece nesta terça

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 1 de fevereiro de 2022 às 06:08

- Atualizado há um ano

. Crédito: Paulo Macêdo/Arquivo Correio

Passar por uma porta pode carregar significados que vão além do simples ato de entrar ou sair de um lugar. A cozinheira Alaíde Conceição foi uma mulher que, durante seus 72 anos, abriu portas e as manteve assim. Em seu ofício, as possibilidades de acolhida eram tão grandes que mantinha portas abertas mesmo quando estava a céu aberto, no primeiro tabuleiro, montado no Comércio.

Nesta segunda-feira que sucedeu a festa de Obaluê, orixá que a regia, morreu Alaíde do Feijão: mulher, negra e soteropolitana que foi testemunha e agente da história nesse país. Alaíde era uma alimentadora, tanto no sentido literal de quem cozinhava uma das melhores feijoadas que se tem notícia, quanto por nutrir almas e sonhos que culminaram, por exemplo, na fundação de instituições como o Ilê Aiyê, Olodum e Muzenza.

Alaíde do Feijão morreu após sofrer uma parada cardiorrespiratória em decorrência da segunda infecção por covid-19. A primeira vez foi em março de 2021, quando passou 12 dias de internada. Neto da matriarca, Eldo Neves contou que sua avó lutou com muita bravura, mas não resistiu e partiu para o descanso. Ela tinha três filhas, sete netos e seis bisnetos. O sepultamento acontece nesta quinta (1º), às 9h, na Qiunta dos Lázaros, e será restrito aos familiares.

O restaurante Alaíde do Feijão existe desde 1974. O ofício foi herdado da mãe, Maria das Neves, que tinha um tabuleiro nas imediações do Elevador Lacerda. Com menos de 15 anos, Alaíde decidiu ajudar a mãe a buscar o sustento dos 12 irmãos - 8 biológicos e mais 4 adotados.

Quem conheceu Alaíde crava: era ela quem dava a última palavra, memória descrita pelo ator Jorge Washington, do Bando de Teatro Olodum. Alaíde bateu o pé para ajudar a mãe, que não a queria trabalhando tão jovem. Em 1974, assumiu o posto de dona Maria das Neves, que se aposentou e foi morar na Ilha de Itaparica. Levou o ponto, a clientela e ampliou a banca, que àquela altura já vendia feijoada e sarapatel. 

Onde Alaíde estava, também havia muita conversa e política. “A gente saía da farra e ia lá comer feijão, mas não era só isso. Estar perto dela era um momento de descontração, alegria, saber de tudo quando era fuxico do movimento negro. Era uma figura que agregava Bahia, Vitória, PT, PC do B, Psol, DEM, todo o mundo se dava bem ali. Toda terça tinha a resenha em Alaíde. Se falava de tudo, da comida, do futebol, da política... Quando o clima esquentava, ela botava água no meio. Quando ela levantava a voz, todo o mundo se abaixava”, conta Jorge Washington.

Nos anos 1990, durante a gestão do governador Antônio Carlos Magalhães, houve uma revitalização no Pelourinho e Alaíde subiu o elevador junto com seu feijão. O tabuleiro virou restaurante e seu feijão virou tradição. Toda terça-feira, recebia deputados, secretários, vereadores, artistas, produtores, criadores, policiais, ladrões, ricos e pobres em seu espaço. Só tinha uma regra: respeitar quando ela desse um basta na agonia. Mas também era proibido sair de lá com fome.

Comida para quem tinha fome Jornalista e amiga, Wanda Chase lembra que perdeu as contas de quantas vezes viu Alaíde dar um prato de feijão a quem precisava. Sobrinha da empresária, Elis Regina é uma das cinco mulheres da família que trabalhavam no restaurante e diz que sua tia não deixava ninguém sair de lá sem um prato de comida, dinheiro de transporte ou um conselho embebido de sabedoria.

O primeiro espaço para o feijão de Alaíde ficava na Ladeira da Ordem Terceira do São Francisco e funcionou de 1993 a 2015, quando ela fez uma mudança para oficializar o que o restaurante já era: um ponto de cultura. O Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) cedeu um imóvel à empresária, que mudou para a Rua das Laranjeiras, também no Pelourinho, onde atuou até os últimos dias de sua vida.

Em nota de pesar, o Coletivo de Entidades Negras (CEN) afirmou que trata-se de uma perda irreparável, “que deixa órfão todo o movimento negro brasileiro”: “Desejamos que Alaíde descanse em paz! Pois ela estará viva para sempre em nossos corações, afinal quem vive na memória nunca morre”.

Coordenador nacional do Coletivo, Yuri Silva lembrou que foi na Rua das Laranjeiras que nasceram iniciativas como o movimento Eu Quero Ela, que incentivou oito candidaturas negras à prefeitura de Salvador. “Lá, o debate democrático sempre foi livre.  Alaíde sempre recebeu a todos nós, inclusive os jovens, com muito carinho. Estou no movimento há 10 anos, mas há figuras como Vovô e João Jorge, há mais de 40 anos no Movimento Negro, e ela sempre os acolheu”, disse Yuri.

Presidente do Olodum, João Jorge descreve Alaíde do Feijão como a personificação da Bahia: “Alaíde era uma mulher negra, do povo Igbo, comerciante. Estamos muito sentidos e vamos sentir por muito tempo”. Ele conta que a conversa com Alaíde era tão importante quanto a própria feijoada. “Estar ali era uma grande experiência de ancestralidade e vivências. Alaíde do Feijão era um consulado africano dentro da Bahia”, define.

Fuxico com Vovô do Ilê Wanda Chase conta Alaíde gostava de brincar com a sensualidade alheia e sempre acabava escutando muitas histórias pessoais. Ela garantia que seu feijão “deixava o negão ‘malassombrado’”, garantindo que o desempenho sexual dos que passavam por lá era garantido. Era amicíssima de Vovô do Ilê e participou da fundação do primeiro bloco afro do Brasil.

A amizade de Alaíde e Vovô era motivo de fuxico no restaurante: criou-se uma lenda de que, quando Vovô avisava que iria lá, Alaíde mandava separar as melhores carnes da feijoada para ele. Se no meio da conversa, alguém se aproximasse, ela dizia que tinha roupa na corda, gíria para explicar que tinha gente chegando e depois aumentava o volume da voz para a pessoa não desconfiar.

Jorge Washington diz que Alaíde é uma pessoa difícil de se encontrar porque ela nunca esperava nada em troca. Gostava de ter gente ao seu redor e de fazer o bem. Ele aproveita para que o legado dela seja mantido: “Frequentar o restaurante é condição fundamental. Estar lá, comer, beber, conversar, dar risada. Todas as homenagens que vierem são justas. Mas para manter o legado tem que manter o restaurante dela de pé”.

Cliente, fã e amigo de Alaíde, Carlinhos Brown também se manifestou sobre a passagem da empresária: “Todas as honrarias àquela que alimenta seus filhos, que alimenta a cultura. A matriarca Alaíde é essa referência de alguém que sempre recebeu com seu sorriso e o seu feijão peculiares. É benção do Ilê Aiyê, do Olodum, da Timbalada, do Cortejo, de todos nós. Nós agradecemos a essa mãe luminosa. Que siga em paz”.