Lívia Sant'Anna Vaz: “Seria inconstitucional falar em revogação das cotas raciais”

Promotora de Justiça do Estado da Bahiaz lança nesta terça (11) o livro Cotas Raciais, 13º livro da Coleção Feminismos Plurais

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 11 de outubro de 2022 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Patricia Souza/Divulgação

No dia 29 de Agosto, a Lei de Cotas Raciais completou 10 anos garantindo que metade das vagas de institutos e universidades federais seja reservada para ex-alunos da rede pública. Questionada e muitas vezes mal interpretada, a política de ações afirmativas que está mudando a cara da universidade pública vai passar por uma revisão em seu texto original.

Mas falar em revogação da Lei, afirma a promotora baiana Lívia Sant’ Anna  Vaz, é uma inconstitucionalidade. No livro Cotas Raciais, que lança hoje, às 19h, na Livraria LDM do Shopping Bela Vista, ela apresenta um estudo  sobre as cotas raciais no Brasil e sobre seu impacto no ensino superior e nos concursos públicos nestes dez anos.  

Com  atuação  na Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa de Salvador, Lívia destaca que, além de seu objetivo concreto, as cotas “nos impelem à reflexão e à ação antirracista, para muito além dos meros discursos rasos da branquitude meritocrática”.    

Cotas Raciais (Jandaíra|R$ 29,90|232 pp) é o décimo terceiro lançamento da Coleção Feminismos Plurais, coordenada por Djamila Ribeiro. A  coleção destina-se à disseminação de conteúdo crítico produzido por pessoas negras, sobretudo mulheres, a preço acessível e linguagem didática, como forma de construir instrumentos para compreender a realidade e debates profundos no país.    

Escrever sobre as cotas raciais era um desejo seu ou partiu de uma provocação da editora? 

Partiu da provocação das pessoas. Eu participei de um debate em 2017, na TVE, sobre cotas raciais. Esse debate viralizou, hoje tem umas 75 mil visualizações, até pela composição do debate. Àquela altura, não esperava mais ter que discutir ser a favor ou contra as cotas. É uma política pública importante, decidida como constitucional pelo STF, então opinar contra ou a favor era algo superado e aquele debate foi sobre isso. Eu começo o livro justamente com esse debate. Um dos vídeos que viralizou eu tive muita dificuldade em assistir porque me rememorava a um momento muito difícil, quase desisti da entrevista e só fui entender a importância daquele debate um tempo depois. 

E por que escrever sobre esse tema?

Eu fiquei com essa pergunta: por que escrever? Pra quem escrever sobre cotas raciais? Essas vivências que tive após o debate me fizeram entender o que estava falando. Era sobre nossa liberdade, antes de ser sobre igualdade é sobre liberdade, que nunca foi cumprida. Liberdade para sermos o que queremos ser. Ainda não temos vez e voz nesse país. Nossa humanidade é negada. Foram dois mais velhos, não por acaso, que me chamaram atenção pra isso. Seu Manoel, um homem negro, garçom, que trabalha num restaurante que frequento perto do trabalho e sempre conversamos muito. Meses após a entrevista cheguei ao restaurante e ele disse que viu uma entrevista minha, uma que eu dizia ‘eu ainda não terminei de falar’. E eu não lembrava de ter falado isso. Depois, um senhor me viu na rua e me agradeceu, disse que naquele dia eu ensinei a falar. O racismo torna natural que a gente esteja em espaços de subalternização. Escrevo esse livro para pessoas negras e antirracistas. Para entender que cotas raciais não são esmolas. São uma medida de reparação importantíssima para nosso povo, mas ainda muito pequena. Digo que não é esmola, mas no final digo que é esmola sim. Cota é uma esmola no sentido de que ainda precisamos avançar muito para construir uma nova realidade racial 

Este ano completa-se uma década da sanção da Lei das Cotas Raciais. O que as cotas mudaram na configuração do país? Qual saldo essa Lei já trouxe para o Brasil?

Os resultados já podem ser percebidos. É um processo ainda em início, de democratização de espaços de poder. É mais visível nas Universidades porque a política pública da Universidade tem 20 anos, a lei que tem 10. Acredito que ainda fazemos uma conta errada. Muitas pessoas têm dito que já temos maioria de estudantes negros nas Universidades, mas será que é só essa a função da política pública? O objetivo é que as pessoas entrem e saiam formadas. E o sucateamento das políticas de permanência têm dificultado isso. Os movimentos negros nunca pleitearam ter cotas eternas. É preciso ter cota por tempo suficiente para desestabilizar a estrutura racista. Temos que pensar nos egressos, pessoas que saem em condição de competir no mercado de trabalho, ainda com uma meritocracia falaciosa. Mas dez anos de lei de cotas não dá conta de quase 4 séculos de escravização.  Seria inconstitucional falar em revogação das cotas raciais porque a Convenção InterAmericana prevê medidas especiais para grupos minorizados. A convenção foi aprovada como norma constitucional. Então temos que falar no aprimoramento, controle, para que ela seja eficaz.

O Feminismos Plurais é uma coleção que preza bastante pelo didatismo. É nessa linha que o seu livro também vai? Explicando o bê-á-bá do assunto para que as pessoas possam ingressar nesse universo?   

A coleção Feminismos Plurais preza bastante pelo didatismo. É nessa linha que o seu livro também vai? Explicando o bê-á-bá do assunto para que as pessoas possam ingressar nesse universo?  Sim. Trago o item específico ‘argumentando pelas cotas raciais’ para aprofundar o debate, estamos falando sobre um país estruturado nas bases do racismo. A raça é um fator determinante na desigualdade do Brasil. É um fator que nos impede de ser um país democrático. Esse livro pretende trazer informações históricas, jurídicas, de informações raciais, numa linguagem que se afaste do juridiquês. Tenho essa missão de me afastar do juridiquês para aproximar as pessoas do Direito. Não é possível que as pessoas tenham que ter tradução para entender seus direitos.

Ficha TécnicaFeminismos Plurais: Cotas Raciais Autora: Lívia Sant'Anna Vaz Páginas: 232 Editora: Jandaíra. Ed. 1. São Paulo, 2022. Preço: R$ 29,90