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Larissa Almeida
Publicado em 18 de dezembro de 2025 às 06:00
No tempo em que comidas podem ser solicitadas pelo celular ou preparadas seguindo manuais online, a maior tecnologia disponível para quem é do axé é o aprendizado vivido junto aos mais velhos. Pelo menos, é isso que defende Nancy de Souza e Silva, mais conhecida como Vovó Cici de Oxalá, egbomi do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. >
Aos 87 anos, a memória lúcida ajudou a contar com detalhes, em um quintal cercado por vegetação diversa e pequenos elementos que identificam orixás e erês, os caminhos que a levaram, junto com a cozinheira Marlene da Costa, a escrever o livro ‘AJEUM BÓ: Histórias da Culinária Ancestral’, que será lançado no Quintal de Yayá, localizado na Rua Professor Rômulo Almeida, 585, no Acupe de Brotas, no próximo sábado (20). >
Vovó Cici de Oxalá e Marlene da Costa e Silva
A obra, que é uma mescla entre lembranças e saberes da culinária de terreiro, é uma recusa ao esquecimento da tradição – a mesma recusa que Vovó Cici leva para a vida ao se classificar como afro-tradicional em contraponto ao afro-contemporâneo. Ela é rápida ao dizer, no entanto, que não é contra as tecnologias e a evolução, mas que o sagrado tem origem e que, por isso, não pode ser gourmetizado. >
A força das suas crenças é o que conduz, nesta entrevista, a reflexão sobre comida, religiosidade, tecnologia e a luta contra a fome – tanto àquela que sustenta o corpo, quanto a que impede os encantamentos necessários para a cura através do alimento. Confira abaixo: >
1) O que diferencia a culinária ancestral das demais culinárias?>
A culinária ancestral vem através da memória dos escravizados que aqui chegaram e que guardaram lembranças de cada local enquanto puderam. Nessas lembranças, estão as comidas votivas que ofereciam aos deuses e orixás. É uma culinária ligada ao sagrado, que sobrevive por causa do sagrado. Aquelas coisas que não se encontravam aqui, por conta do solo, foram adaptadas com o consentimento dos orixás.>
2) O Ajeum Bó, seu mais novo livro, fala do resgate dessa culinária ancestral, que está se perdendo nas cozinhas. A que você atribui essa perda?>
Quando essas comidas se perdem é porque as características das casas de candomblé vão mudando. Esses saberes vêm com as pessoas antigas. As mais modernas têm outras ‘miuçagens’, ideias e, às vezes, sem querer, rituais que eram feitos antes já não estão mais sendo usados. >
Quando entrei [no candomblé] para fazer contato com orixá eu tinha 18 anos e ralávamos cebola em um ralador feito de lata de óleo que mandavam furar. Hoje, temos o liquidificador, que vai modificando, inclusive, o sabor. O camarão, depois que limpávamos, eu via as minhas mais velhas pegando um pano de algodão, bater na entrada das portas e isso fazia com que o camarão desmanchasse todinho. Era assim que ele era massacrado. O azeite de dendê era feito por nós mesmos, na roça. Hoje, já é industrializado.>
As coisas vão se modificando, mas a memória da oferenda em muitas casas tradicionais continua sendo a mesma. Claro que a gente evolui, mas a parte sagrada a gente tenta continuar.>
3) Como assimilar essas novas tecnologias sem perder de vista o sagrado?>
Devemos preservar o sagrado o máximo que puder. Ogum é o orixá da tecnologia e do progresso. Tudo que você fizer antes, hoje e amanhã é Ogum. Então, acompanhamos a tecnologia, até mesmo por necessidade, mas devemos permanecer com o sagrado. Pelo menos, no orixá, devemos preservar a tradição, porque não se mexe naquilo que é do orixá. É que nem comida de mãe e de vó. Por que é gostosa? Porque cada uma tem seu jeito de fazer.>
4) A falta de documentação desses saberes é um fator que contribui para o sumiço das receitas tradicionais de terreiro?>
A tradição é oral. Tem as documentações, mas as autênticas que existem são antigas. As de hoje já têm outras coisas agregadas. Por isso, eu jamais vou perdoar o acarajé da Barbie. Estou abestalhada até hoje com isso (ri).>
Tudo tem segredos e muita coisa se perdeu na culinária porque não se passou adiante. Quem sabia fazer, fazia e te dava pronto. Não ensinavam e muita coisa ficou esquecida. Eu sou a favor de que se ensine. A massa do acarajé, por exemplo, é preciso ser ensinado que ela só cresce se a pessoa tiver a cabeça boa para aquilo, porque senão ela nunca vai fazer uma massa uniforme. Tempero é mistério, por isso cada pessoa cozinha de um jeito. A cozinha é carinho, mas hoje tem tecnologia e self-service, sendo que ela não é nada disso. >
5) Cada vez mais, a comida a que temos acesso reflete um mundo globalizado, com menos singularidades. Estamos perdendo a capacidade de criar novas receitas com identidade?>
As receitas com identidade não se podem criar, porque já recebemos elas com autenticidade. Aquilo que se põe demais se torna diferente da origem. Hoje, temos mil temperos. As pessoas vão fazendo experiências, mas orixá não é experiência, é o tradicional, é aquilo que nossos antigos fizeram. Não se pode fazer experiência com o sagrado. Por isso, não gosto de pensar no acarajé rosa. >
6) A culinária ancestral não pode ser gourmet?>
Não, jamais. Na ancestralidade, você tem origem – e não importa se é africano ou asiático, é possível ter o mesmo resultado. Já fui convidada para o Shana Tova, o Ano Novo judaico, e vi eles cantarem para sacrificar uma galinha, igual no candomblé. Fui convidada a ir ao Ramadã e ouvi os árabes cantarem para sacrificar um animal. E sabe por que a gente canta? Porque pedimos perdão pelo que vamos fazer e pedimos que o animal não sofra. São três religiões que fazem a mesma coisa, com a mesma cerimônia e respeito para fazer uma oferenda a Deus. Então, não tem como gourmetizar isso.>
7) Qual o principal resgate que você traz no Ajeum Bó?>
A palavra ‘Ajeum’ é comida, em iorubá, e a palavra ‘Bó' vem de quantidade. Quando a pessoa canta para oferecer comida às pessoas, se canta “È arayè Olubajé / Olubajé ajeun nbó / Aráayé a je nbo / Olúbàje a je nbo”, um apelo para que nunca falte comida para as pessoas da terra, para o ser humano. No olubajé, que é o banquete dos reis, são vários pratos. >
Então, o grande resgate é alimentar as pessoas, não deixar o mundo morrer de fome e dividir com quem não tem. Se nós podemos, a gente divide. Afinal, saco vazio não pára em pé. Sem alimento, não há raciocínio para fazer nada. A comida alimenta o corpo e a sabedoria alimenta a mente. E é a sabedoria que ajuda a amar a Deus sobre todas as coisas.>
O livro é memória e o que tem lá é o que eu vi no meu tempo de orixá. No tempo em que se cozinhava para orixá, como yabassé – nome dado à figura feminina que exercia essa função –, aprendemos que a primeira orixá que usa a comida como encantamento é Oxum. É a partir da comida que vencemos as coisas mais impressionantes. A comida é feitiço, é vida e é morte. >
8) Um dos locais que serviu como fonte dos alimentos e das memórias presentes no livro é a Feira de São Joaquim. Qual sua relação com esse espaço?>
A feira, de um modo geral, pertence a quatro orixás: O grão pertence a Iroko; os legumes ao orixá Okô, o senhor do inhame, que é a base da alimentação do povo africano; as coisas bonitas da feira e a negociação são Oxum; e aquele burburinho é Exu. Na África, quando se vai à feira, o rei antes de entrar saúda os quatro. Então, há um mistério, um encantamento entre os donos das feiras e o público. Lá dentro, encontramos a capacidade de criar. A minha relação com esse espaço é de compreensão, de receber e também dar fartura. A feira é um mundo.>
9) Há uma profunda crença na culinária como fonte de cura. Como fazer com que a comida sirva a esse esse propósito?>
Tudo acontece quando você conhece a comida certa dos orixás para oferenda. O orixá vai ver duas coisas boas: o amor que você colocou nas suas mãos na hora de manejar os grãos e as coisas que você canta quando pede e quando mexe na panela, porque esse é o momento em que é passada a sua energia para ele. O axé é aquilo que nasce com você e é também o que faz aquela oferenda ficar sagrada. Quando há fé, o orixá absorve aquela energia, o calor depositado. A depender do coração, tem comida que seca e não apodrece. Por isso, é através do que há de mais simples no coração que é possível resolver e curar muitas coisas.>
10) Qual a saída para preservar as receitas ancestrais?>
A primeira coisa é o respeito a Deus e às pessoas que vieram escravizadas nos navios negreiros, com suas memórias e dores. Aqueles que puderam, dentro do seu sofrimento, deixaram uma oferenda antes de ir embora e aquilo foi passado de um para o outro, construindo memória. Por isso, quem é atuante no candomblé, precisa manter o sagrado na culinária, porque é uma forma de respeitar os ancestrais. Quando se deixa de fazer o que é tradição, deixamos de acreditar. >