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Carmen Vasconcelos
Publicado em 25 de dezembro de 2025 às 05:00
Em uma sociedade que transformou pressa em padrão e esgotamento em credencial de pertencimento, o psicólogo Lucas Freire lança um alerta urgente: estamos vivendo uma epidemia de exaustão. Autor de Exaustos: Imaginando saídas para o cansaço diário, o especialista — referência nacional em Playfulness — defende que o cansaço deixou de ser apenas emocional e passou a aprisionar a mente em “neuroprisões”, alimentadas pela hiperconexão, pela dopagem por performance e pela produtividade 24/7. >
Nesta entrevista, Freire explica por que estamos tão cansados, como identificar esses cativeiros neurológicos e de que forma o espírito lúdico pode se tornar uma ferramenta real de cura, leveza e reinvenção.“Exaustos: o cansaço das rotinas contemporâneas” ,>
Lucas, seu livro parte da ideia de que vivemos em um tempo tão acelerado que o cansaço se tornou inevitável. O que, na sua visão, caracteriza essa exaustão contemporânea — e por que ela parece atingir cada vez mais pessoas produtivas e bem-sucedidas?>
O que me fascina nessa história toda é que estamos vivendo um paradoxo absurdo: nunca tivemos tantas ferramentas de produtividade e, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão cansados. É como se a promessa da tecnologia fosse nos libertar, mas acabou nos aprisionando de um jeito mais sofisticado.A exaustão contemporânea não é só cansaço físico. É algo mais insidioso. Eu chamo de "neuroprisões": aprisionamentos invisíveis que sequestram nossa atenção, colonizam nossos desejos e destroem nossa autonomia temporal. A gente vive num estado de alerta permanente, com o cérebro sempre ligado em múltiplas frentes.E por que atinge justamente os mais produtivos? Porque eles caíram na armadilha de acreditar que são máquinas otimizáveis. Quanto mais competentes, mais demandas. Quanto mais entregam, mais esperam deles. É uma espiral onde o sucesso vira o próprio combustível da exaustão. Byung-Chul Han descreve isso lindamente: tornamo-nos algozes de nós mesmos, exploradores e explorados na mesma pessoa.>
A rotina de trabalho é hoje uma das principais fontes desse cansaço extremo? Quais comportamentos ou hábitos profissionais mais alimentam esse estado de exaustão?>
Sem dúvida, a rotina de trabalho é uma das principais usinas de exaustão. Mas não é o trabalho em si — é a forma como ele invadiu todos os espaços da nossa vida. Eu identifico alguns comportamentos criminosos:Primeiro, o que eu chamo de "disponibilidade compulsória". Aquela sensação de que você precisa responder imediatamente qualquer mensagem, mesmo às 22h, domingo ou nas férias. Isso destrói qualquer possibilidade de recuperação neurológica.Segundo, a multitarefa patológica: estamos em reunião no Teams enquanto respondemos e-mails e checamos o WhatsApp. Pesquisas mostram que isso reduz em até 40% nossa capacidade cognitiva. É como dirigir bêbado, mas socialmente aceito.Terceiro — e esse é cruel — as reuniões simultâneas. Conheço gente que entra em duas, três reuniões ao mesmo tempo. É o delírio da produtividade levado ao paroxismo.E tem o pior de todos: a erosão do tempo livre. A gente não tem mais intervalos genuínos entre uma tarefa e outra. É tudo contínuo, tudo urgente, tudo importante. O cérebro nunca descansa. >
Você fala que “exaustão é o novo normal”. Em que momento o corpo ou a mente dão sinais de que esse ritmo deixou de ser produtividade e se tornou adoecimento?>
Essa é uma pergunta fundamental. O corpo é sábio, mas a gente perdeu a capacidade de ouvir os sinais. Eu costumo dizer que existe um momento em que você deixa de estar cansado e passa a ser o cansaço.Os sinais são claros, mas sutis: quando você acorda já cansado, mesmo depois de dormir; quando qualquer tarefa simples parece um Everest; quando você não consegue mais sentir prazer nas coisas que antes te animavam — isso se chama anedonia, e é sério.Há também a irritabilidade desproporcional, aquela sensação de estar sempre no limite. A memória começa a falhar. A criatividade desaparece. Você vira um autômato cumprindo tarefas.E tem um sinal que eu considero definitivo: quando você tem tempo livre, mas não consegue aproveitá-lo, fica ansioso, inquieto, com culpa. Isso é o que eu chamo de "atrofia lúdica": você perdeu a capacidade de brincar, de estar presente, de simplesmente ser.Se você se reconheceu em três ou mais desses sinais, não é mais produtividade, é adoecimento disfarçado de alta performance.>
O trabalho híbrido e o uso constante de telas fizeram com que a fronteira entre vida pessoal e profissional quase desaparecesse. Como essa hiperconexão impacta nossa saúde mental?>
O trabalho híbrido poderia ter sido uma revolução maravilhosa, mas pode ser uma armadilha ainda mais sofisticada. Trocamos o deslocamento pela onipresença. Antes, quando você saía do escritório, havia uma transição física que sinalizava para o cérebro "acabou o expediente".No home office, seu escritório é o seu quarto, sua sala de reunião é a cozinha. Você almoça com o notebook aberto. A última coisa que vê antes de dormir é uma tela. A primeira, quando acorda, também.E tem algo que as pessoas não percebem: cada ambiente da nossa casa tinha uma função específica no nosso cérebro. Quarto para descansar, sala para conviver, cozinha para nutrir. Quando você trabalha em todos esses lugares, você contamina esses espaços com o estresse laboral. Seu cérebro não consegue mais diferenciar.A hiperconexão criou o que eu chamo de "estado de prontidão permanente". Você nunca está realmente relaxado porque, no fundo, está sempre disponível. É como ser médico de plantão 24/7, mas sem receber adicional noturno.>
No livro, você propõe o conceito de Detox Digital. Como essa prática pode ajudar a reconstruir uma rotina mais saudável — especialmente para quem precisa estar conectado o tempo todo por causa do trabalho?>
O que eu defendo é algo mais radical e, ao mesmo tempo, mais prático: recuperar sua autonomia temporal. Não é sobre desconectar completamente, é sobre reconectar conscientemente.Começa com coisas simples, mas revolucionárias: ter horários sagrados de não-resposta. Não é sobre ser irresponsável, é sobre estabelecer que você não é uma máquina de atendimento. As pessoas vão sobreviver se você responder em duas horas, não em dois minutos.Tem também o que eu chamo de "5 minutos de rebeldia lúdica diária". É escolher conscientemente fazer algo completamente inútil, que não agrega nada à sua produtividade. Olhar as nuvens, rabiscar, cantar no chuveiro, montar Lego — no meu caso.E existe uma prática mais profunda: desinstalar aplicativos que você não abriu manualmente nas últimas duas semanas. Se você só entra neles por notificação, você não está usando o aplicativo — é ele que está usando você.O Detox Digital verdadeiro é reconquistar o direito de escolher o que vai te aprisionar. Porque a liberdade, como dizia Sartre, é escolher sua própria prisão.>
Há uma romantização da produtividade e da “rotina cheia” nas redes sociais. Como esse ideal de performance constante contribui para o ciclo de exaustão?>
As redes sociais criaram uma pornografia da produtividade que é obscena. Você vê aqueles stories: "5h da manhã, já na academia", "fim de semana estudando", "durmo 4h por dia, mas tô voando". É uma mentira perigosa disfarçada de inspiração. E o pior: virou capital social. Quanto mais ocupado você parece, mais valioso você é. Quanto mais exausto, mais comprometido. É doentio.Tem uma pesquisa que eu adoro citar: pessoas que romantizam suas rotinas insanas nas redes têm índices maiores de burnout e depressão. Mas continuam performando felicidade produtiva porque isso virou a moeda de troca da relevância social.E olha a perversidade: quando você vê todo mundo "voando", você se sente inadequado por estar cansado. Aí você força ainda mais, entra no mesmo ciclo, e perpetua essa cultura de autoexploração.Eu costumo provocar: se você precisa postar sua rotina para validar que ela é boa, talvez ela não seja tão boa assim. A vida plena dispensa plateia.>
Muitos trabalhadores relatam que, mesmo quando têm tempo livre, não conseguem descansar de verdade. O que explica essa dificuldade de desconexão?>
Isso é um dos sintomas mais cruéis da exaustão contemporânea. Chama-se "fadiga do repouso" — quando você está tão habituado ao estado de alerta que seu sistema nervoso não consegue mais desacelerar.Neurologicamente, o que acontece é que seu córtex pré-frontal está constantemente ativado, monitorando ameaças. Só que no mundo moderno, as "ameaças" são emails não respondidos, projetos pendentes, notificações não lidas. Seu cérebro trata tudo como urgência de sobrevivência.E tem outro componente: nós perdemos a capacidade de tédio. Qualquer segundinho livre, a gente preenche com alguma coisa. Fila do banco? Instagram. Elevador? Email. Antes de dormir? Netflix. A gente tem pavor do vazio, porque foi treinado para acreditar que tempo não preenchido é tempo desperdiçado.Mas aqui está o paradoxo: o cérebro precisa de momentos de "não-fazer" para processar, consolidar memórias, ser criativo. É no ócio que a gente se reconstrói. Como disse Winnicott, é no brincar, no tempo livre de objetivos, que a gente encontra a gente mesmo.Então você tem tempo, mas não consegue descansar porque descansar virou mais uma tarefa a ser otimizada. "Vou meditar para ser mais produtivo." Até o descanso virou trabalho. >
Como o ambiente corporativo pode contribuir para quebrar essa lógica da exaustão? Quais atitudes ou políticas de bem-estar realmente fazem diferença?>
Eu trabalho com empresas há mais de 20 anos, e posso te dizer: a maioria do que se faz em nome de bem-estar corporativo é o que eu chamo de "well-washing". É maquiagem em ferida aberta.Oferecem yoga e meditação, mas mantêm culturas tóxicas. Falam de equilíbrio, mas mandam email às 23h. Criam salas de descompressão, mas punem quem chega 5 minutos atrasados. É hipocrisia institucionalizada.O que realmente faz diferença? Vou te dar exemplos concretos:Primeiro: direito à desconexão. Não como política no papel, mas como prática real. Proibir emails fora do horário. Não valorizar quem responde imediatamente. Celebrar quem respeita seus limites.Segundo: acabar com a reunionite aguda. Nenhuma reunião sem pauta clara. Nenhuma reunião com mais de seis pessoas sem motivo excepcional. E pelo amor dos deuses, acabar com reuniões simultâneas.Terceiro: criar espaços genuínos de ócio criativo. Não aquele "dia do pijama", mas tempo real para projetos paralelos, experimentação, conversas sem objetivo.Quarto — e esse é revolucionário: medir sucesso por impacto, não por tempo. Se alguém entrega resultados excepcionais em 30 horas semanais, ela é mais eficiente que quem precisa de 70. Mas a maioria das empresas ainda opera com a lógica fordista de "bumbum na cadeira".E tem o mais importante: líderes que modelam o comportamento. Se o CEO responde email à meia-noite, todo mundo vai fazer o mesmo. Cultura não muda com PowerPoint, muda com exemplo. >
Existe diferença entre cansaço físico, emocional e mental — e como reconhecer quando a exaustão ultrapassa o limite do que é apenas “cansaço normal”?>
Existem três tipos de exaustão, e elas funcionam de formas diferentes:Cansaço físico é o mais honesto. Você usou seu corpo, ele pede descanso, você descansa, ele se recupera. Simples, direto, ancestral. É como nossos antepassados ficavam cansados: caçaram, colheram, correram, agora dormem.Cansaço emocional é mais complexo. É o desgaste de lidar com conflitos, pressões relacionais, demandas afetivas constantes. É aquela exaustão de ter que "estar bem" o tempo todo, de gerenciar impressões, de regular emoções em ambientes hostis. Esse tipo de cansaço não passa só com sono — precisa de acolhimento, conexão genuína, validação.Cansaço mental é o mais pernicioso. É quando seu cérebro está sobrecarregado de informações, decisões, estímulos. É a fadiga cognitiva de ter processado demais, decidido demais, pensado demais. E aqui está o problema: descanso mental não é Netflix. É silêncio, tédio, contemplação.O limite do "cansaço normal" é quando ele se resolve com descanso proporcional. Se você dormiu bem e acordou cansado, se descansou o fim de semana e voltou exausto, se tirou férias e já está esgotado na segunda semana — isso não é cansaço, é burnout em gestação.Tem um teste que eu uso: se você precisa de estimulantes (café, energético) para funcionar e de depressores (álcool, remédios) para desligar, você está medicando sintomas de exaustão crônica.>
A Geração Z tem falado cada vez mais sobre saúde mental e equilíbrio entre vida e trabalho. Você acredita que esse debate representa uma mudança cultural real ou ainda esbarra em estruturas produtivistas?>
Tenho uma visão esperançosa, mas realista sobre isso. A Geração Z está fazendo algo revolucionário: explicitando o que as gerações anteriores calaram. Eles estão dizendo "não" de uma forma que meus pais nunca puderam, que eu mesmo tive que aprender tarde.Eles não romantizam exaustão. Falam abertamente sobre saúde mental. Recusam culturas tóxicas. Questionam o sentido de trabalhar até morrer por empresas que te substituem em semanas. É uma mudança fundamental de paradigma.Mas, e tem um "mas" importante, isso ainda esbarra em estruturas econômicas e sociais que não mudaram. O capitalismo continua exigindo crescimento infinito. A desigualdade continua forçando pessoas a aceitar qualquer condição. A gig economy precarizou ainda mais o trabalho.Então você tem uma geração que quer equilíbrio vivendo num sistema que pune quem busca equilíbrio. É uma tensão que ainda vai gerar muito conflito.Mas eu acredito que estamos num ponto de inflexão. Pela primeira vez, empresas estão perdendo talentos devido a cultura tóxica. Pela primeira vez, saúde mental entrou como pauta estratégica. Pela primeira vez, admitir vulnerabilidade virou força, não fraqueza.É uma mudança lenta, mas é real. E vai ser a Geração Z, com uma parcela consciente das outras gerações, que vai forçar essa transformação. Ou mudamos, ou continuamos fabricando exaustos até o sistema implodir.>
O que o leitor pode esperar de Exaustos — é um livro de reflexão, de orientação prática, ou uma provocação para repensarmos o modo como vivemos e trabalhamos?>
É um livro que opera em três camadas:Primeiro, é um diagnóstico. Eu mapeio os "cativeiros neurológicos" que nos prendem: o sequestro da atenção pelos algoritmos, a erosão da autonomia temporal, a colonização dos nossos desejos, a atrofia lúdica. É entender COMO chegamos aqui.Segundo, é uma provocação filosófica e científica. Eu trago neurociência, psicologia positiva, filosofia estoica, pensadores como Byung-Chul Han, Viktor Frankl, Erich Fromm. Quero que você pense, não que decore receitas.Terceiro — e só aí têm saídas práticas. Mas não são "hacks de produtividade". São convites para pequenas rebeliões cotidianas. Exercícios de reconquista da sua própria vida. Práticas de Play e Flow como estados de resistência ao automatismo.Eu queria escrever um livro que fosse honesto sobre a complexidade do problema. Que não vendesse esperança barata. Que dissesse: "Tá difícil? Tá difícil mesmo. Mas existe saída, e ela começa com você reconhecer que liberdade é escolher o que vai te aprisionar."É um livro para quem quer parar de fingir que está tudo bem. Para quem está cansado de estar cansado. Para quem quer imaginar uma vida diferente, mesmo que isso signifique confrontar o sistema todo.>
Por fim, que mensagem você deixaria para quem se reconhece nesse estado de exaustão, mas não sabe por onde começar a mudar?>
Se você está se reconhecendo nessa história toda, primeiro: pare de se culpar. Você não é fraco. Você não é fraco, não é preguiçoso. Você está vivendo em uma época que transformou exaustão em virtude e descanso em culpa. Isso é estrutural, não é falha de caráter.Segundo: comece pequeno. Não tente revolucionar sua vida amanhã. Escolha UMA coisa. Pode ser desligar notificações depois das 20h. Pode ser ter um sábado sem responder mensagens de trabalho. Pode ser cinco minutos por dia fazendo algo inútil e prazeroso.Eu costumo sugerir o que chamo de "microrebeliões lúdicas". São atos pequenos de desobediência ao automatismo. Almoçar sem celular. Caminhar sem destino. Desenhar. Cantar no chuveiro. Coisas que nosso cérebro ridiculariza como "perda de tempo", mas que são, na verdade, reconexão com o humano.Terceiro: busque aliados. Conversem sobre isso. Perceba que você não está sozinho. A exaustão coletiva precisa de respostas coletivas também. Pode ser na sua empresa, com amigos, em comunidades. Solidão piora tudo.E quarto - e esse é o mais difícil: aceite que talvez você precise fazer escolhas dolorosas. Talvez seja sair daquele emprego que te consome. Talvez seja reduzir padrão de vida para ter mais tempo. Talvez seja decepcionar expectativas alheias.Porque no fim, a pergunta que eu deixo é: do que vale ter sucesso numa vida que não é sua?A mudança começa quando você para de otimizar a própria exaustão e decide que seu cansaço está te dizendo algo importante. Ele é um mensageiro. Escute. E lembra: você não precisa ter tudo resolvido.É disso que o mundo precisa. Não de mais gente produtiva. Mas de mais gente viva. >
Ficha técnica >
Título: Exaustos: Imaginando saídas para o cansaço diário>
Autoria: Lucas Freire >
Editora: Buzz Editora ISBN (impresso): 978-65-5393-503-7 ISBN (e-book): 978-65-5393-504-4 >
Páginas: 208 >
Preços: 69,90 (impresso) e 49,90 (e-book) >
Onde encontrar: Amazon >
Quem é?>
Lucas Freire é psicólogo, professor, empreendedor, escritor e palestrante. Especialista na criação de treinamentos e programas com experiências voltados para o desenvolvimento comportamental, criatividade, resiliência e liderança. Em 20 anos de carreira, realizou mais de 2 mil eventos, impactando mais de 100 mil pessoas. Pioneiro e referência no Brasil na Ciência do Playfulness, estuda a atitude mental de curiosidade, abertura e engajamento criativo com o mundo ao redor. É autor dos livros “Playfulness: Trilhas para uma vida resiliente e criativa”, “O Leão da Bochecha de Balão e a redescoberta do Play” e do lançamento “Exaustos: Imaginando saídas para o cansaço diário”.
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