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Priscila Natividade
Publicado em 3 de julho de 2022 às 16:00
- Atualizado há 2 anos
Formar pessoas mais capazes de diferenciar uma opinião do conhecimento estabelecido tornou-se um grande desafio no mundo das fake News e do domínio das redes sociais. O segredo para desvendar este nó é o estímulo ao pensamento crítico, acredita o doutor em Educação e professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Daniel Cara. “Pensa na sua escolarização: houve mais intimidação ou estimulação a ser autoral, com consistência?”, foi a resposta dele, quando confrontado sobre o assunto. >
A resposta vai remeter a educação bancária, termo que Paulo Freire – educador e um dos expoentes da Pedagogia Crítica no Brasil – usou para definir estudantes que são tratados como depósitos de conteúdos pelo sistema de ensino. “A Base Nacional Comum Curricular e a Reforma do Ensino Médio são expoentes dessa lógica de uma educação que forma pessoas reprodutoras e não autorais. Não há pedagogia crítica e emancipação sem complexidade”, defende. >
E o desafio de transformar conhecimento em poder não é nem o motivo maior da crise do sistema de educacional do país. O problema está no objetivo da educação, acredita Cara. “As escolas buscam formar alunos para passar no vestibular. Resultado: o curso de medicina é um dos mais concorridos. E na pandemia, sem formação cidadã e científica, tivemos médicos ministrando cloroquina, o que colocou ainda mais vidas em risco. Ou seja, vestibular é uma péssima régua. E nosso sistema de ensino está orientado por ela”. Veja mais na entrevista. >
Em que consiste a pedagogia crítica? >
É uma pedagogia que busca que cada uma e cada um possa dizer a sua própria palavra, de modo emancipado, a partir de uma leitura livre e consistente do mundo e de forma problematizada. Significa ter a capacidade de resolver problemas de modo livre, pleno, autoral e pautado em valores democráticos – algo ainda raro. >
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O que tornou a formação para o pensamento crítico tão rara e incomum no nosso sistema educacional? Como ela se faz efetivamente presente na educação brasileira hoje? >
É triste dizer, mas ela não se faz – salvo em raras ilhas exceção, como pouquíssimas escolas públicas e ainda mais raras escolas privadas. Equivocadamente, o Brasil – um país em desenvolvimento – aderiu às reformas econômicas da educação empreendidas nos EUA nos anos 1990, em especial por influência das propostas lideradas pelo economista Eric Hanushek.Elas preconizam que a qualidade da educação pode ser mensurada essencialmente por avaliações de larga escala de língua – no nosso caso, a língua portuguesa – matemática e ciências. Qual é o problema? É uma pedagogia pobre, pouco pautada no pensamento crítico, na criatividade, nada pautada na promoção de valores democráticos. * >
Como esse formato se refletiu no Brasil e foi determinante para o cenário que temos atualmente? >
As reformas econômicas da educação nos EUA, alicerçadas pelo neoliberalismo dos governos republicanos de Ronald Reagan e George Bush, mas aprofundadas por democratas como Bill Clinton e Barack Obama, também explicam a decadência dos EUA. Veja: é uma antipedagogia, pois as reformas econômicas ignoram as Ciências da Educação. No Brasil, elas vigoram desde o 1995, com FHC, e não foram questionadas sequer nos governos Lula e Dilma. E pior, foram aprofundadas com Temer e Bolsonaro. >
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Qual a base, o conceito e a perspectiva da Pedagogia do Pensamento Crítico? >
A pedagogia “para o” pensamento crítico, “do” pensamento crítico ou, simplesmente, “pedagogia crítica” começa com os gregos, em especial Sócrates (470 a.C.- 399 a.C.), Platão (427 a.C. - 347 a.C.) e Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) e avança muito com o iluminista Erasmo de Roterdã (1466-1536), com o filósofo Michel de Montaigne (1533-1592), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Jean Piaget (1896-1980), a riquíssima pedagogia russa, com especial menção a Lev Vygotsky (1896-1934). Aqui citei apenas alguns, mas no Brasil e na segunda metade do século 20, o maior expoente é Paulo Freire (1921-1997). >
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No novo Ensino Médio, Filosofia e Sociologia passam a ser disciplinas optativas, o aluno faz se quiser. Como essa mudança impacta a formação do pensamento crítico, se conteúdos que levam justamente a reflexão, não fazem mais parte da base obrigatória? >
Todas as disciplinas deveriam e devem promover o pensamento crítico, contudo, Filosofia e Sociologia tinham a missão de – sozinhas – resolver esse problema. Agora, não há mais nada destinado a isso. O correto seria ter essas duas disciplinas e mudar a forma de ensinar em todas as demais. Em outras palavras, o Brasil comete erros atrás de erros. >
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Que retrato você faz das escolas diante do choque de mudanças que a pandemia provocou na educação, principalmente, no ensino conteudista e tradicional? >
A pandemia fortaleceu a “educação bancária”, como conceituou Paulo Freire. Explicando de modo simples, educação bancária é aquela que os alunos são tratados como depósitos de conteúdo, apenas. A pesquisa séria em educação ensina que alguns poucos alunos até podem aprender com a pedagogia tradicional, veja: alguns até podem.Mas em escala, a pedagogia tradicional e conteudista mais exclui que inclui. E forma pessoas reprodutoras, não autorais. Algo distante das demandas do século 21. Aliás, algo que é confrontado desde os filósofos gregos. * >
No início do ano, a repercussão no Twitter sobre seu post - em resposta ao que Felipe Neto disse sobre o Teorema de Pitágoras - provocou a discussão sobre a ‘consciência que viver é se deparar todos os dias com triângulos retângulos’. Em um momento de tantas fake news e do domínio das redes sociais, por que é cada vez mais crucial uma boa formação epistemológica? >
O problema ali é que Felipe Neto faz uso de uma boa e velha polêmica, a da utilidade do aprendizado, mas – sem perceber – ele acabou sendo promotor de certa preguiça intelectual. Ele desconhecer a aplicabilidade do Teorema de Pitágoras, em si, é um problema menor, pois o próprio debate no Twitter foi suficiente para ensiná-lo.Mas o aprendizado complexo – e Pitágoras é até pouco complexo – exige capacidade de abstração, isso vai além da utilidade simples e imediata. Não há pedagogia crítica e emancipação sem complexidade.E aprender é como fazer exercício físico porque dói, incomoda, angustia, mas precisa ter concentração, disciplina, consistência e disposição. A vida é, essencialmente, complexa. Quem não a enfrenta, concretamente, não vive plenamente. >
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Dificuldade de interpretar texto, elaborar um argumento, distinguir fato de opinião. Que práticas da Pedagogia do Pensamento crítico faltam nas escolas? >
Quase todas, salvo as raras exceções de bons projetos pedagógicos ou o trabalho de excelentes professores: resilientes.O problema é do objetivo da educação. Não é o que está estabelecido na constituição, no artigo 205: o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. Ao invés de cumprir a Carta Magna, as escolas buscam formar alunos para passar no vestibular. * >
E como estimular o pensamento crítico dos alunos? >
Uma vez uma finlandesa me deu uma dica: para melhorar a educação no Brasil é preciso ler e implementar as ideias de dois educadores – o baiano Anísio Teixeira e o pernambucano Paulo Freire. Eles nunca foram inspirações reais aos nossos sistemas de ensino, porque exigem uma gestão complexa da educação, trabalhosa e rica – em termos pedagógicos. Contudo, o Brasil evita implementá-los. Darcy Ribeiro sempre teve razão: a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto. >
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O que ainda é barreira entre a ‘educação bancária’ e a educação para a formação e o pensamento crítico? >
Em geral, os gestores públicos da educação não são formados em Pedagogia. Ou seja, o Brasil nunca teve um Ministro ou Ministra da Educação formado em Pedagogia ou nas demais licenciaturas. Isso é algo inédito no mundo.Quem formula as políticas educacionais desconhecem as Ciências da Educação. E não há recursos suficientes para a estruturação da área. Aliás, esses dois problemas se retroalimentam. * >
O que você vê como um desafio fundamental para educação contemporânea? Quais os caminhos e onde ainda é necessário avançar? >
Trabalhar a pedagogia crítica, pautada nas ciências e orientada à emancipação humana. Entregar a gestão da educação às educadoras e aos educadores, da mesma forma que na pandemia ficou claro que as gestoras e os gestores da saúde devem ser sanitaristas.>
E também é preciso construir um outro projeto econômico, orientado para o povo brasileiro. Sou discípulo do Câmara Cascudo. Eu acredito que o melhor do Brasil são as brasileiras e os brasileiros e nossa economia deve ser orientada a investir e promover os talentos da nossa gente. >
QUEM É>
Daniel Cara é doutor em Educação, mestre em Ciência Política e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), instituição onde hoje é também professor. Cara foi dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que coordenou entre 2006 e 2020. Além disso, foi vencedor do Prêmio Darcy Ribeiro 2015, concedido pela Câmara dos Deputados, em nome do Congresso Nacional. Atualmente é membro do Conselho Universitário da Unifesp, cargo que ocupa desde 2015. >