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Da Redação
Publicado em 29 de abril de 2023 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Cruzada de Carlos Terra se tornou por muito anos parte da paisagem urbana da cidade (Arquivo) Por muito tempo, a paisagem urbana de Salvador foi marcada pela imagem de um homem vestido de preto na porta do Fórum Ruy Barbosa com óculos escuro que disfarçava a angústia nos olhos, mas nunca a perseverança e o inconformismo, expressos na voz, faixas e cartazes em busca de justiça. Era o retrato que personificava quase 18 anos da saga pessoal do pai para ver na cadeia todos os responsáveis pelo brutal assassinato do filho. Em 21 de fevereiro de 2019, a batalha de José Carlos Terra chegou ao fim. Não por ter concretizado o desejo ainda vivo. A morte veio quatro anos mais cedo para ele. >
A história por trás daquela cena recorrente no Campo da Pólvora, em Nazaré, começa em 23 de março de 2001, a partir da descoberta de um caixote incinerado em um terreno baldio da Avenida Vasco da Gama. Dentro dele, a polícia encontrou o corpo carbonizado do adolescente Lucas Terra, de apenas 14 anos. Dois dias antes, o garoto havia desaparecido após sair de casa para participar de um culto na Igreja Universal do Rio Vermelho, da qual era frequentador. Até que o Instituto Médico Legal (IML) confirmasse a identidade da vítima, foram 43 dias de espera.>
Os detalhes iniciais das investigações chocaram o país: Lucas Terra havia sido estuprado e queimado vivo, a princípio, pelo pastor Silvio Galiza, que exercia um tipo de dominação sobre adolescente, a ponto de levá-lo várias vezes para dormir nas dependências da Igreja Universal do Rio Vermelho. Em outubro do mesmo ano, o inquérito foi concluído, e Galiza passou a ser formalmente acusado pela morte do adolescente. Contudo, não teve a prisão decretada pela Justiça. O que só ocorreu após Carlos Terra acampar em frente à sede do Ministério Público do Estado da Bahia (MP). Foi a primeira vitória de uma saga feita também de muitas derrotas.>
Nos anos seguintes, o administrador e representante comercial se dedicou quase exclusivamente a lutar pela condenação dos culpados. Publicou um livro sobre o homicídio, sofreu ameaças de morte e sequestro dos outros dois filhos, rodou o mundo pressionando autoridades no Brasil e no exterior. Enfrentou o poder da Universal, viu testemunhas coagidas e perseguidas, teve amigo inscrito no programa de proteção a testemunhas, confrontou a tropa numerosa de advogados caros destacados para defender o pastor. >
Reviravolta prolonga batalha com mais dois pastores A fase inicial da cruzada terminou em 9 de junho de 2004, quando Silvio Galiza foi condenado a 23 anos e 5 meses de prisão, pena reduzida depois para 15 anos. Mas o MP e a família de Lucas Terra tinham certeza de que havia mais gente envolvida. A convicção estava correta. Dois anos depois, em entrevista ao programa Linha Direta, da TV Globo, o pastor mudou a versão apresentada antes à Justiça e provocou uma reviravolta profunda no caso.>
Segundo Galiza, o adolescente foi assassinado pelos pastores Fernando Aparecido e Joel Miranda por ter flagrados os dois em ato sexual. Dali em diante, mais 13 anos de batalha. Acampou diversas vezes na porta do fórum e fez greve de fome para cobrar celeridade da Justiça. Em um blog criado em 2011, amigos da família de Lucas listaram todos os órgãos, nacionais e internacionais, onde ele buscou ajuda: sede da ONU em Genebra e Ministério da Justiça em Brasília, entre outros. Chegou a cursar Direito para entender os trâmites da Justiça. >
Carlos ainda engoliu ao ver os dois pastores inocentados em 2013. Embora a sentença tenha sido alterada em 2015, o Supremo anulou e depois manteve a decisão do Tribunal de Justiça da Bahia, determinando que Aparecido e Miranda fossem a júri popular, mas não teve tempo de assisti-lo. Faleceu em 2019, após sofrer parada respiratória decorrente de cirrose hepática. Foi enterrado ao lado do filho. A saga, já sem ele, terminou na noite de quinta, com os pastores condenados a 21 anos de prisão.>
Grito em nome do pai; fim de luto da mãe “Ele estaria muito feliz de viver esse momento com a gente, de virar a página, porque foram anos de luta”, afirmou Marion Terra, viúva de Carlos e mãe de Lucas, que recebeu o CORREIO em sua residência, no Costa Azul. Após a juíza Andréa Teixeira Sarmento Netto anunciar a decisão na sala secreta do Tribunal do Júri, o irmão mais novo da vítima, Felipe, gritou como o pai se estivesse vivo. 'Ele estaria muito feliz de viver esse momento com a gente', diz Marion Terra após condenação de pastores (Paula Fróes) “Quando saímos da sala, ele não pensou duas vezes. Gritou: ‘vou fazer o que meu pai faria: assassinos’”, contou Carlos, mais velho dos três irmãos, que herdou o nome do pai. “Minha primeira reação foi levantar os braços e agradecer. Fora do fórum, estava lotado de gente da imprensa. Achei que era só para os assassinos, mas não. Fui até eles e cantei: ‘porque ele vive posso crer no amanhã’”, contou Marion, que quer agora descansar e familiares fora do Brasil. “Eu não tenho mais motivos para chorar”, emendou. Na volta, os Terra vão manter a saga do patriarca. Agora, com um projeto de auxílio a outras famílias como a deles.>