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Mari Leal
Publicado em 11 de setembro de 2023 às 06:00
No imaginário social patriarcal, pessoas com útero tendem a se sentirem completas quando dão à luz um novo ser. Nesse script romantizado, o rito de passagem abre portas para uma alegria eterna, quase divina, que se retroalimenta no exercício do cuidar. A realidade, no entanto, tem nuances bem diferentes, às vezes, extremamente dolorosas. >
É messe dado, que se converte em tabu social, que está na base do novo longa-metragem da premiada documentarista brasileira Claudia Priscilla. Eu Deveria Estar Feliz conta as vivências de quatro mulheres de diferentes estados brasileiros que conviveram e venceram a depressão pós-parto, condição que, segundo dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), acomete mais de 25% das mães no Brasil. A produção estreia hoje, 0h15, no canal GNT. >
O Ministério da Saúde define a patologia como uma condição de profunda tristeza, desespero e falta de esperança que acontece logo após o parto, com efeitos na vida social, afetiva e cognitiva de quem gerou e do recém-nascido. O documentário também detalha os caminhos distintos escolhidos por cada uma para a cura.>
Dor silenciosa>
A descoberta da gravidez aos 23 anos mexeu profundamente com a soteropolitana Lorena Baobá. Ela, uma mulher negra, à época, estudante de engenharia, evangélica e filha de evangélicos fez ali o primeiro encontro com os sinais do que, mais tarde, se converteria em diagnóstico clínico. >
No documentário, a trajetória de Lorena se cruza às de Karla, atriz que mora em Niterói (Rio de Janeiro) com os pais e sua filha Flor, e que tem a meditação e a yoga como caminhos de equilíbrio físico e espiritual; Bárbara (Espírito Santo), engenheira florestal, indígena pertencente ao grupo dos tupiniquins, que vive com o seu companheiro Luiz e o seu filho Tié; e de Fernanda (São Paulo), uma arquiteta que divide o tempo entre o trabalho e o cuidado de dois filhos.>
A literatura médica não aponta para uma causa específica da depressão pós-parto. A condição, no entanto, costuma estar associada à soma de fatores físicos, emocionais, estilo de vida, pressão social ou histórico de problemas e transtornos mentais. Fisicamente, o desequilíbrio hormonal após o término da gravidez também é considerado fator essencial. >
“O processo depressivo começou na gestação, mas a medida que as coisas vão caminhando, meu filho nasce e eu me afundo completamente no processo. Só depois de um ano eu consegui pensar em possibilidades de existência fora do lugar da dor, mas ainda revisitando sempre, como se ela batesse na minha porta e me convidasse para tomar um café. Eu abria porque aquele espaço de dor era confortável para mim”, compartilha Lorena em conversa ao CORREIO. >
“Meu filho começou a falar cedo e como eu ficava muito tempo na cama, quando eu levantava e ia para a sala ele dizia ‘mamãe, não. Volta para a cama’. Para ele era natural me ver naquele lugar”, relata. >
Acompanhamento psiquiátrico, psicológico, de uma doula, transição religiosa, e, principalmente, o olhar sobre si mesma foram as ferramentas adotadas por Lorena durante o caminho de remissão da depressão-pós parto. >
“Meu filho chega e rebobina meu ‘VHS’. Chega dizendo vamos repensar quem você é, quais são suas prioridades”, diz. Hoje, aos 28, Lorena está prestes a completar a faculdade de enfermagem. No processo, também se descobriu como escritora, doula e mulher de axé. >
Longa-metragem >
A semente que fez nascer o documentário também resulta de uma experiência pessoal. Não da diretora Claudia Priscilla, mas de Ric Vidal, que assina a produção do longa. Vidal é filho de uma mulher que teve depressão pós-parto, e que descobriu tardiamente a condição, outro traço da realidade que acomete pessoas com a capacidade de gestar a vida em seus corpos. >
“A depressão pós-parto é vista quase que como uma questão moral. É como se só existissem duas possibilidades: ser a mãe que ama o bebê e ser a má mãe”, reflete Claudia, ao comentar a alegria do convite para estar à frente da produção. >
“Acho muito interessante é que essas mulheres [cujas as histórias foram selecionadas] têm esse ponto de contato com a depressão, mas cada uma traz em si uma singularidade. Gosto muito quando as histórias se afastam porque é a partir disso que consigo aprofundar”, explica a diretora, que também responde pelo roteiro.>
Além do filme, a iniciativa também contempla um app com informações e orientações sobre o tema. Homônimo ao título do longa, o app pode ser baixado gratuitamente nas lojas Google Play e Apple Store. >
Após a estreia na TV, o longa-metragem integrará o catálogo do Globoplay. O portfólio da diretora conta com produções como Bixa Travesti, que tem como protagonista a cantora transexual negra Linn da Quebrada, além de Olhe para Mim de Novo e Leite de Ferro. >
Depressão pós-parto: sintomas, diagnóstico e tratamento >
O diagnóstico da depressão pós-parto, segundo o Ministério da Saúde, é basicamente clínico, com observação dos sintomas. Esses comumente passam por melancolia desmedida, pensamento suicida, vontade de fazer mal ao bebê, perda ou ganho súbito de peso, alteração severa do sono, entre outros, podendo chegar a alucinações, pensamentos delirantes e irreais e desconexão com o bebê e pessoas do entorno em casos mais severos, denominados psicose pós-parto. O diagnóstico é feito por um médico psiquiatra.>
O tratamento da depressão é feito caso a caso, observando as demandas peculiares a cada paciente. Medicamentos antidepressivos combinados com psicoterapia fazem parte do processo de cura. >
No Sistema Único de Saúde (SUS), os profissionais são capacitados para identificar, já no pré-natal, sinais e fatores de risco que podem levar ao desenvolvimento da patologia. As equipes de Saúde da Família podem solicitar o apoio de dos profissionais de saúde mental, por intermédio do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) ou de outras equipes de saúde mental do município. Alguns casos considerados mais graves, que precisem de um cuidado intensivo, devem ser encaminhados aos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) ou outros serviços de referência em saúde mental do município ou da região.>