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Publicado em 24 de novembro de 2023 às 15:59
Durante 16 anos, guardei no meu bolso um mesmo sonho. Foram meses de planejamento. Ingresso batalhado. Passagem comprada. Hospedagem adquirida, suada, quase lotada. Movimento feito depois de ter a Lover Fest cancelada por conta da pandemia em 2020. Assim como eu, outros milhares de brasileiros ansiaram por essa mesma aspiração por mais de uma década. Algumas pessoas, desejaram ir ao show da cantora e compositora Taylor Swift por menos tempo. Mas, não importa. Todos ficamos no mesmo barco no último final de semana, no Rio de Janeiro. >
Antes de quebrar julgamentos sobre a artista ou rebater quaisquer julgamentos sobre ser fútil o desejo de vê-la de perto, é preciso tocar no mais importante. Uma sensação térmica de 60 graus, sem água para refrescar; um tapume que aumenta este calor e que gerou queimaduras nas peles de muitos jovens, e um medo iminente de que mais um arrastão fosse acontecer na saída do estádio. >
Esta foi a realidade das mais de 60 mil pessoas no dia em que Ana Benevides nos deixou. A jovem de 23 anos era também fã de Taylor, alegre, cuidadosa com os amigos e familiares, batalhadora, linda e cheia de qualidades que já foram imensamente divulgadas por seus amigos e familiares.>
Foi com a informação dessa dolorosa morte que me dirigi ao Estádio Nilton Santos no dia 18 de novembro, às seis horas da manhã. A fila já estava quilométrica, ainda que o show de abertura estivesse marcado apenas para às 18h30. Fila esta que não precisaria existir se houvesse uma melhor organização dos eventos nacionais.>
Talvez você não saiba que em muitos outros países não existe isso de todo mundo ficar em pé em um show durante todo o tempo. Até na pista os lugares são marcados em cadeiras. As pessoas sabem onde vão sentar e não se aglomeram ou se empurram. Aqui, não. No Brasil, muitos fãs chegam o mais cedo possível na tentativa de conseguir um lugar melhor e mais perto do seu ídolo. Mesmo quando assim se concretiza, todos se apertam na grade, tentando alguma privilegiada visão. E é aí que começa o péssimo manejo de empresas como a Time For Fun (T4F), responsável pela organização do show referente.>
No dia da morte de Ana, as saídas de ar do estádio estavam fechadas. Mais abafamento. Mais calor. A informação que circulou foi de que aquilo estava sendo feito para que as pessoas que se aglomeram do lado de fora, e que não conseguiram ingressos, não pudessem assistir à apresentação. Não se podia entrar com garrafas de água ou alimentos. A água vendida, que dificilmente era encontrada, custava R$ 8. Uma sequência de absurdos que visam o lucro acima do bem-estar.>
Na minha chegada, gente de diversos estados e países conversavam entre si embaixo de um sol escaldante de 45 graus. Sem vento. No processo enfileirado, havia, em minha frente, uma garota diabética de 15 anos e sua amiga, de 16, que vieram me oferecer pulseiras da amizade. Esta é uma tradição dos shows de Taylor Swift: trocar (ou presentear com) pulseiras que levam letras das suas canções, nomes dos seus álbuns e afins. O costume surgiu por conta da letra da música You Are Your Own Kid, da artista, na qual ela afirma: “Olhei para mim em um vestido encharcado de sangue e vi algo que eles não podem levar.(...) Tudo o que você perde é um passo que você dá. Então faça as pulseiras da amizade, saboreie o momento. Você não tem motivos para ter medo. Você está sozinho nessa, criança. Você consegue encarar isso”.>
Os valores pregados em suas letras metafóricas parecem levados a sério por todos os fãs. A troca não aconteceu apenas com as pulseiras. Todos estavam se ajudando. E cada um seguia aterrorizado com o que havia acontecido no dia anterior. Um passava gelo para o outro. Um deixava o outro sair da fila para ir ao banheiro e voltar. Um abanava o outro com os leques. Um ajudava o outro a ficar mais na sombra. Mas nada adiantava. O calor não nos deixava. Asmática, tive uma crise reconhecida e precisei usar a minha bombinha e sair da fila por alguns minutos. Ninguém da organização interveio. Não nos olhavam com atenção.>
O público, entre si, colaborava mais do que os próprios funcionários do local, os quais não sabiam como agir. Sem instruções corretas, deixavam confusões recorrentes. A doce garota diabética desmaiou na minha frente. Todos se mobilizaram para que ela recebesse atendimento médico de forma ágil. Apesar da organização do show estar, finalmente, distribuindo água, eram copos pequenos, e trazidos apenas entre longas pausas, de mais de meia hora. Nunca o suficiente para atender à multidão.>
Para completar, até a solicitação de socorro se tornava temível. Qualquer necessidade virava uma vírgula diante de uma equipe médica mal preparada, que deu para a menina diabética apenas água jogada no cabelo e um comprimido. Para tantos, o suporte emitido foi a administração de clonazepam (Rivotril), substância indicada para crises agudas de ansiedade, de acordo com o Conselho Federal de Farmácia.>
No TikTok, a fã conhecida como Ma Books relata que estava em um início de desmaio quando, no Posto Médico, perguntaram o que ela tinha, e seguiram questionando, ao invés de fornecerem socorro imediato. Após, nada. Falaram apenas para sentar. A jovem afirma ter recebido mais ajuda de outras garotas na pista do show do que no local onde os profissionais da saúde deveriam agir.>
A confusão para ir ao banheiro também era imensa e, claro, apenas banheiros de terceiros, pagos, existem do lado de fora. Havia, ainda, somente uma saída para quem estava nas filas cercadas pelas barreiras. Nenhum suporte para que as pessoas tivessem mais opções para a liberdade. Era necessário passar por toda a fila para a sair dela, mesmo passando mal, ao invés de ter algum controle com seguranças para uma ida mais rápida diante de quem já estava no meio do caos.>
Neste dia, porém, muito já havia sido aprimorado. Lá dentro, bastante água distribuída, mais respiro, saídas de ar abertas. Já era permitida a entrada com água, por exemplo. Detalhe este que já se tornou obrigatório por lei após toda a tragédia. No entanto, ainda estávamos longe do que é necessário. Nunca deixe confortável quem deixa o desconforto acontecer. É o que precisamos lembrar quando se trata das empresas de organização de shows e eventos de grande porte, ao menos em casos como este.>
Contudo, Taylor Swift estava, no dia 17, jogando água para todos da plateia. Assustou-se ao observar pessoas solicitando líquido no dia terrível. A cantora parou o show diversas vezes para dar suporte e, mesmo enquanto cantava, estava dando garrafas e checando os fãs. Ficou extremamente preocupada e claramente abalada. Brigou com seguranças para que ajudassem o público com mais rapidez em meio ao calor. E, ainda assim, não sabia tudo o que estava acontecendo. Não estava ciente da desordem causada pela T4F. Depois, mudou o jogo. Fez novas regras serem implantadas. E no dia 18, mesmo com outro cenário, ainda estávamos em meio a este caos.>
Não é culpa da artista. Tanto que, em toda a sua carreira, nunca um fã havia falecido ou sequer queixas sobre as estruturas haviam sido implantadas. Em toda a sua carreira, nunca uma situação como esta se instalou. Em seus mais de 17 anos de música, foi o Brasil que conseguiu o feito de fazer com que ela precisasse tomar as atitudes que tomou. Eventos pessimamente preparados por empresas brasileiras afetaram algo que carreguei como sonho durante tantos anos.>
Quando a vida me batia, quando meu coração partia, quando a felicidade também fazia lição, quando não era adulta ou quando eu era adulta demais, trancava a porta do quarto e passava o dia inteiro prestando atenção nas letras dela. Dissecando. Não tenho como contar quantas vezes isso me salvou. Talvez você conheça Taylor Swift pelas músicas mais famosas. Talvez você não conheça as maiores poesias e metáforas densas escritas por ela. Talvez você não saiba que ela escreve sobre luto, misoginia, legado, vida profissional, relacionamentos abusivos, caráter, cura, sociedade, amadurecimento, política e tantos outros temas de importância. Talvez você nunca tenha visto músicas como My Tears Ricochet; Long Live (em sua versão completa e original); It’s Time to Go; Clean; The Last Great American Dynasty; You All Over Me; Maroon; Never Grow Up; Cardigan; The Man e tantas outras.>
Mas não sou fã da compositora por nostalgia. Sou fã pela poetisa que ela é. Como escritora, fico mais extasiada a cada verso e a cada analogia, com seus cabelos brancos em suas palavras e em seus tópicos. Dói em mim como a mídia geral tenta, a todo custo, diminuir mulheres escritoras, reduzindo-a a temáticas abordadas há milhões de anos. Na entrada do meu casamento, a música Daylight estava lá: “Cheguei a acreditar que o amor deveria ser vermelho ardente, mas é dourado, como a luz do dia”. Na minha vida, não há quem tenha passado sem ouvir esta aclamação. Em alguns dos meus livros lançados para o mundo, o nome dela é citado. O meu sonho era sobre o que me resgatou em dores e me fez entender e lidar com o mundo de melhor e mais clara maneira. Não adulta. Não criança. >
Em um país tão carente de afeto e atenção social, com tramas tão dificultosas, diversas vidas utilizam a música e a arte como um escape saudável, que se faz vital para suportar. Desta maneira, é enorme a quantidade de nomes que podem observar a própria história em catarse ao ir em um espetáculo de um artista que têm muitos anos na indústria, como é o caso da Taylor. Principalmente no caso dela, que escreve as próprias narrativas. É de respeitar-se, assim como se respeita um torcedor fanático de futebol ou um homem vidrado em suas torcidas. >
Taylor, inclusive, havia adiado apenas dois shows em toda a sua trajetória. Sempre deixou claro o quanto reverenciava o esforço e tempo do seu público. Nunca cobrou por Meet & Greet. É conhecida por ajudar pessoas de todo o mundo, custeando seus estudos, atendimentos psicológicos e outros fatores. E, não, isto não acontece apenas nos Estados Unidos. Mas, então, em meio a um luto intenso e mais desordem, com um fã convulsionando na porta do estádio, houve o adiamento, depois que passei mais de 11 horas na fileira de gente.>
O anúncio foi dado quando todos já estavam lá dentro, perto do palco, contando os minutos. Isto indignou a muitos. Não a mim. Apesar das mudanças já propiciadas, tudo ainda estava aquém. Desmaios e mal-estar continuavam. Não sabemos o que levou a cantora, tão presente e fiel aos seus, a agir em cima da hora. Não sabemos se veio dela este atraso. A cena, no entanto, feria. Lágrimas a cada esquina. Sonhos partidos. Boa parte do público já presente não teria condições de remanejar passagens, arcar com mais custos nas hospedagens e lidar com todo o realinhamento para ficar e assistir ao show em outro dia.>
As diárias nos hotéis estavam exorbitantes, por conta da grande demanda causada pela cantora norte-americana. Ainda que descontos fossem dados para quem fosse ampliar a estadia por muitos dias, os preços estavam fora da realidade para tantos. Fantasias elaboradas, expectativas feitas, e agora tudo pelo ralo.>
As dores só se acumulavam. E em meio a elas, mais uma morte. Dessa vez não pela negligência dos organizadores de shows, mas pela violência do país. Gabriel Mongenot, outro fã de Taylor, levou facadas em um assalto no Rio de Janeiro. Ele também foi até o estado para ir até o show.>
Mais um pesar. Tentar reorganizar a agenda, deixar compromissos de lado e mover montanhas para ficar para a data remarcada foi ainda mais difícil depois de tantas perdas.>
A negligência é o verdadeiro antônimo do amor. Foi ela que tornou agridoce a minha experiência quando, finalmente, estive vendo Taylor Swift na minha frente, após tantos anos. Sim, ela não é a culpada. Mas o luto e toda a balbúrdia dos últimos dias ainda estavam em todos nós. Choramos, sorrimos, berramos as letras com todo o pulmão, e vimos uma organização minimamente melhor no dia tão sonhado. Mãos trêmulas. Realizei. O show é impecável e a humanização da artista nos acolhe nas conversas e nas músicas surpresas de cada data. Ainda com filas, porém. Ainda sem cadeiras onde deveria. Ali seguia a pairar a dor por toda a sequência acometida. Respirei fundo. Feliz e triste. >
É necessário deixar claro que este não é um relato de uma fã cega e injusta. Não fazer é também tomar uma atitude. E o não ato de Swift em relação à família de Ana Benevides – pelo menos, até o momento –, é o que me parte o coração e me deixa apreensiva quando se trata da minha admiração. A família esteve desamparada financeiramente, como abordaram em entrevista ao Fantástico. Todos nós imaginávamos que Taylor estava ajudando os pais de Ana desde que recebeu a notícia do seu falecimento. Afinal, sempre foi este tipo de ação que ela firmou durante este tempo.>
Relatos afirmam que a equipe da artista estava tirando fotos dos fãs machucados e que passaram mal – com permissão deles – e pareciam estar se munindo de provas para tomar atitudes nos bastidores. Mas aí entra o questionamento. Taylor está em outro país, não sabe como as coisas funcionam aqui. Precisa que o jurídico dela atue cautelosamente. Até que ponto ela deixou de dar apoio à família da Ana? Será que ela está tomando providências que precisam passar por burocracias? >
Se ela tomar certas atitudes pode acabar tomando a culpa para si e afetando o processo que puniria a T4F? A investigação sobre a morte da Ana está ainda correndo. Contudo, segue nos soando destoante que a compositora que mais prega o senso de união e bem-estar, não tenha, ainda, abraçado estas pessoas. Como aquela que sempre nos amparou, não foi o nosso espelho no desamparo? Fazer questão era o mínimo. Questões.>
Quem não se posiciona, escolhe também um lado. Taylor cativou uma comunidade com palavras centradas no senso de pertencimento e de verdade. Simbolicamente, ela sempre foi a conselheira empática e inteligente que nos deu a mão, saindo do banal. O universo criado por ela é de reflexos: ela o nosso; nós, o dela. Por isso, é natural que sigamos em negação ou esperança. Não sabemos o que está acontecendo por trás em meio a tantos tópicos. Já vimos Taylor mostrar, depois de grande espera, que estava fazendo o correto. Por tudo o que sei de Swift nesses 16 anos, estou dando o benefício da dúvida e crendo que ela está se movimentando nos bastidores, entre leis e cuidados. Até porque, temos um histórico de vezes em que ela foi massacrada por coisas que, depois, se mostraram inverídicas ou incompletas. >
Quem acompanhou a coesão da cantora por anos, sabe que ela não divulga os seus bons feitos. Doações, ajudas, visitas a hospitais, acompanhamentos para mães, surpresas em casamentos de fãs e até músicas escritas para adoecidos estão em seus atos. Não é à toa que o meme "Pelo que conheço da Taylor" circulou pela internet. As suas letras trazem os seus valores, as suas defesas e as suas histórias de vida. Conhecemos o seu número favorito, as decepções, as amizades, as voltas por cima e tantas outras montanhas. Long Live, que é a minha música favorita, deixa claro o seu amor por aqueles que a acompanham. Não acompanhamos Taylor no cotidiano, mas sentimos que sim, e é árduo separar esta concepção de qualquer outro ponto. Ela sempre foi para onde tantos de nós fomos para nos entendermos, para nos cuidarmos, nos abraçarmos. Ponte de autoconhecimento.>
Sobre esta parte que ainda nos aflige, só nos resta, até então, esperar. A questão maior é que apontar dedos para quem não é o verdadeiro culpado de todo o principal caos não nos ajudará a chegar longe. E é o que muitos brasileiros têm feito. A pauta está equivocada. A manchete precisa ser outra. A foto, nas capas de matérias, precisa ser dos sócios da tal empresa absurda.>
Até a homenagem feita para a compositora no Cristo Redentor virou fonte de ataques para a cantora, que agradeceu, sim, imensamente pelo ato em seu primeiro dia no palco. O objetivo, para que esta lombada queimada não se repita, é exigir de quem precisa ser cobrado. É reivindicar justiça perante os verdadeiros algozes, que podem, inclusive, causar mais óbitos e farpas amanhã. A saída para ganhar é não permitir. Não deixar que continuemos com a mesma formulação para eventos futuros. É a Tickets for Fun (T4F) que precisa ser punida e questionada, assim como as licenças para conglomerados deste porte. Por quê este não tem sido o repertório principal?>
Uma história sem grandes decisões nunca será uma grande história. Até quando o nosso país vai seguir arrancando páginas para encher bolsos? Até quando teremos grandes shows sem cadeiras nas pistas, apenas para que possam vender mais? Até quando teremos tanta falta de leis e regras a serem seguidas por um CNPJ? Até quando vamos ser tratados, pelo nosso próprio país, como açougue? Sem lugares marcados, obrigamos vidas a se porem em risco. As coisas só começam a mudar quando apontamos para o que continua igual, em repetição.>