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Luiza Gonçalves
Publicado em 26 de agosto de 2025 às 09:58
Médico psiquiatra soteropolitano, Juliano Moreira (1873-1933) é considerado o fundador da psiquiatria e da psicanálise no Brasil. Negro, de origem pobre e extremamente precoce, Moreira entrou na Faculdade de Medicina da Bahia em 1891, com apenas 14 anos. Cinco anos após sua formatura, era professor substituto da seção de doenças nervosas e mentais da mesma escola. Moreira foi o primeiro professor universitário brasileiro a citar e incorporar a teoria psicanalítica no ensino da medicina e sempre explicitou a discordância quanto à atribuição da degeneração do povo brasileiro à mestiçagem. >
“Estudando um pouco de Juliano Moreira, eu descobri que ele era um gênio e o nome desse espetáculo estava relacionado à isto. Mas há um outro fato: ele entrou com 14 anos de idade na faculdade, então, além de ser um gênio, ele entrou anjo e salvou vidas, descobriu e batalhou por nós. Um anjo preto, de jaleco branco”, relata Leno Sacramento.>
Inspirado pela história de Moreira, seu protagonismo e a ausência de memórias sobre sua infância, o diretor da Cia Encruzilhadas mergulhou na pesquisa e fabulação narrativa para construir Anjo Preto de Branco, primeiro espetáculo infantojuvenil da companhia baiana, que estreia neste sábado (30), às 16h, no Museu Afro-Brasileiro – Ufba.>
Um espetáculo infantojuvenil para todos os públicos que contará, sem pretensão bibliográfica, uma história inspirada livremente na vida de Juliano Moreira, tomando como ponto de partida o Juliano criança, nascido no Centro Histórico de Salvador, no ano de 1872, em ambiente ainda escravocrata.>
“Contar o que não tem na biografia é contar, talvez, o que a biografia não conta, que é a infância dele, por conta do racismo, por conta da pobreza. Não temos registros da infância dele e a gente sabe porque. Então, relacionei com o que é uma criança hoje no Pelourinho, com 14 anos, trazendo de uma forma lúdica para que crianças e adultos imaginem quem foi Juliano, o que passou Juliano. Sua figura é muito atual, muito presente e é muito importante falamos sobre esses gênios pretos, Juliano e muitos outros”, defende Sacramento.>
Desafios>
Em cena, sete crianças e um adulto performam as possibilidades de Moreira a partir da imaginação. No espetáculo, o gênio brasileiro conversa com árvores ancestrais, dança com as estrelas, enfrenta monstros e descobre, com olhos de criança, que a cura também pode nascer das brincadeiras.>
Conhecida por trazer em suas peças discussões densas em torno da temática do racismo e da experiência negra, a Cia Encruzilhadas, sob direção de Sacramento, explica que a chave para adaptar as temáticas ao infantojuvenil foi a ludicidade, aplicando o diálogo de modo a plantar pequenos questionamentos em cada membro da audiência. O processo de direção também exigiu adaptações.>
“Fazer um espetáculo com crianças é desafiador. Buscar a concentração das crianças, o entendimento do que elas estão fazendo. Fomos fazendo algumas artimanhas, alguns malabares, e até envolvendo elas no lúdico, para que fizessem com prazer. Eu estou com sete gênios no palco. É desafiador? Sim, mas também muito prazeroso”, explica Leno.>
Único ator adulto do elenco, àngótúnbí soube desde o início dos ensaios que sua relação com as crianças em Anjo Preto de Branco seria atravessada pela vivência enquanto pai de duas meninas: “Passei o processo todo pensando: se eu conseguir me aproximar das crianças do elenco com o mesmo respeito e carinho que me relaciono com minhas filhas, poderei construir uma relação de confiança e aí o processo será divertido. Esse contato deixa uma marca muito bonita de que, quando o processo é feito com afeto, a arte chega como mensagem que inspira. Essas crianças me inspiraram a buscar um Juliano Moreira que, talvez, nem esteja registrado em livros ou artigos”, garante o artista.>
Além do desafio artístico, àngótúnbí reflete sobre a responsabilidade política de dar vida a uma figura histórica como Juliano Moreira e a importância de construir esse diálogo com diferentes gerações: “Este foi o meu maior desafio: falar de um cientista negro, considerado o pai da psiquiatria no Brasil, cuja história ainda é cercada de muitas interrogações. Se pararmos para pensar nos tempos atuais, dois séculos após o seu nascimento, que nós ainda experiênciamos as violências que são fruto do racismo, iremos nos questionar como este homem sobreviveu em um período que marcava o fim da escravidão no Brasil”.>
SERVIÇO - Espetáculo ANJO PRETO DE BRANCO | de 30 de agosto a 11 de outubro (sábados, às 16h, e domingos, às 10h), no Mafro - Museu Afro-Brasileiro da Ufba | Ingressos: gratuitos, disponíveis no Sympla + um quilo de alimento não perecível>