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'O riso é um elo entre toda a humanidade’: o olhar crítico do escritor marfinense GauZ

Autor veio pela primeira vez ao Brasil para participar da Flip e da Flipelô

  • Foto do(a) author(a) Luiza Gonçalves
  • Luiza Gonçalves

Publicado em 12 de agosto de 2025 às 10:37

O riso é um elo entre toda a humanidade’: o olhar crítico do escritor marfinense Gauz
O riso é um elo entre toda a humanidade’: o olhar crítico do escritor marfinense Gauz Crédito: Divulgação

A primeira passagem do autor marfinense GauZ’, 54, na Bahia, durante a Flipelô, no último sábado (9), fez o público pensar no caminho de casa: discurso anticapitalista engajado, provocação aos clichês da crítica literária branca e até admiração à mestiçagem brasileira e defesa da reconstrução de imaginários.

Um dos momentos mais marcantes da conversa foi quando GauZ’ foi questionado sobre quem são os “sem papel” na França: “A gente precisa parar e pensar no absurdo que é chamar uma pessoa que vive, mora, trabalha e cria filhos de clandestina, ilegal. As palavras fabricam significado, assim como fizemos com a palavra negro. Sem papel é um estado administrativo, isso não deveria definir um estado humano”. A reflexão está no seu primeiro romance, De Pé Tá Pago, que sai agora pela editora Ercolano, que documenta as condições de trabalho dos negros na França. Em entrevista ao CORREIO, Gauz compartilhou mais detalhes sobre sua trajetória na escrita e o fazer africano da literatura contemporânea.

Como a literatura e a escrita chegam na sua vida ?

Comecei na literatura da forma mais clássica possível: pelas cartas. Não existe forma mais antiga de se expressar na escrita literária do que escrever cartas. Eu escrevia cartas para minha mãe quando tinha 11 anos e meus pais se mudaram para outra cidade, deixando-me em uma cidade diferente por conta dos estudos. No início, era assim: “Querida mamãe, estou bem instalado, a comida é boa e estou estudando direitinho”. Fiz isso por umas duas semanas, mas  comecei a me entediar. Comecei então a contar histórias. No início, histórias verdadeiras e em seguida passei a inventá-las. Depois de uns dois meses, quando fui para casa nas férias, descobri que, sempre que recebia uma carta minha, minha mãe lia para toda a família e vizinhos. Foi aí que entendi que não estava escrevendo só para ela. E comecei a inventar histórias cada vez mais longas e engraçadas. Ali encontrei meu primeiro público e percebi que precisava contar coisas inteligentes, engraçadas e que despertassem curiosidade

Pode me falar um pouco do seu primeiro romance publicado, De Pé tá Pago, que agora chega ao Brasil.

Antes de escrever De Pé tá Pago, eu já tinha escrito um longa-metragem e documentários . Mas, sendo negro na França, é muito complicado fazer cinema e isso me frustrava muito. Então, em 2011, decidi voltar para a Costa do Marfim e, como não tinha dinheiro para pagar a passagem de avião, decidi arrumar um trabalho temporário. O trabalho mais fácil e rápido de conseguir quando você é negro na França é o de agente de segurança. Eu me dizia que ia trabalhar um ou dois meses e depois voltaria para a Costa do Marfim. Meu primeiro posto como agente numa loja e justamente no primeiro dia de saldão. Quando abri a loja, todas aquelas pessoas me atropelaram para entrar, porque eram as promoções. Era a primeira vez que eu via aquilo. Então decidi começar a anotar. E como o agente de segurança, na verdade, não serve para grande coisa, eu tinha tempo para escrever. Continuei assim, ao fim de seis semanas, já tinha dinheiro para pagar minha passagem. Voltei para a Costa do Marfim e levei essas anotações comigo  pensando em escrever essa história da loja como uma espécie de testamento da minha vida na França durante 11 anos.

No livro, o humor é uma ferramenta que se destaca. Como você o utilizou aliado à crítica política e social ali presente?

O sistema mundial capitalista de consumo é algo muito engraçado. Entrar em qualquer loja é muito engraçado, na verdade. Eu não precisava mudar nada: bastava olhar para as cenas. Quando você vai a uma loja, é porque tudo ao seu redor está dizendo para você consumir, para estourar seu cartão de crédito, para gastar o dinheiro pelo qual você foi escravizado durante um ou dois meses. E, quando chega lá, você se sente como o rei do mundo e se torna ridículo em relação ao que a situação realmente é, que é simplesmente comprar um produto de consumo. E um outro ponto sobre o humor é que um ser humano que ri é alguém que compreendeu. Quando você ri, compartilha imediatamente a inteligência da situação. O riso é realmente um elo de toda a humanidade.

De Pé tá Pago do autor GauZ
De Pé tá Pago do autor GauZ Crédito: Divulgação

Além de De Pé tá Pago, você escreveu outros quatro romances

Um motivo de orgulho para mim é que nunca escrevo os mesmos romances. Cada um têm uma gênese diferente, uma estrutura diferente, mesmo que meu discurso político e estético seja sempre muito engajado, anticapitalista e uma escrita que defende os invisíveis. Depois de De Pé tá Pago, escrevi Camarade Papa (2018), que é uma história da colonização vista por dois personagens separados por 100 anos, dentre eles um branco do final do século XIX que chega na Costa do Marfim como um imigrante. Os colonos são migrante e grande parte eram pessoas pobres que sonhavam, naquela época, em mudar seu destino indo para a África. Enquanto hoje, os africanos sonham em mudar seu destino vindo para a Europa ou para o Ocidente, certo? Os brancos esquecem que eles fizeram isso também. Depois, escrevi Black Manou (2020), que é a peregrinação de um ex-viciado abidjanense que vai viver em Paris e cria um mundo paralelo nela. Lanço também Cocoaïans (2022) onde eu falo da história do cacau, visto da Costa do Marfim em 1900. Hoje a Costa do Marfim é o maior país produtor de cacau no mundo. Mas não de chocolate. O chocolate é produzido na Suíça. Então eu inventei uma espécie de revolta distópica da nação que produz o cacau e que decide não vender mais, e cria sua própria revolução”. E por fim tenho Les Portes (2024), sobre uma revolta dos sem-documentos em Paris em 1996.

Como é fazer parte dessa geração de autores que trazem uma nova reflexão acerca do continente africano, sua representação e identidade?

Vou dizer uma coisa muito pretensiosa. Os africanos trouxeram algo genial para a língua e para as histórias que não existiam na literatura clássica francesa, inglesa ou portuguesa. E eu acho que o Ocidente não está suficientemente consciente disso. Chinua Achebe, Bernard Dadié, Wole Soyinka e Ahmadou Kourouma deixaram a literatura clássica europeia ultrapassada. Acredito que nós, que nascemos em cidades pós-coloniais, acrescentamos outra camada civilizacional. Temos uma literatura ao mesmo tempo intimista e universal. Na realidade não foi a força que nos colonizou. Foi a cultura, o imaginário. Inventaram um imaginário onde diziam que nós não éramos humanos de verdade. Que éramos sub-humanos e  isso lhes dava o direito de empacotar as pessoas nos navios para jogá-las no Brasil, na Jamaica, na América. Só que o nosso imaginário é imaterial. Essa é a grande resistência dos ancestrais. Então, você podia colocar correntes nos corpos, mas não podia tirar o que está na cabeça. E a luta que todos nós estamos travando agora, escrevendo, fazendo fotos, teatro, cinema, é uma luta do imaginário, uma nova maneira de ver o mundo. 

E isso relaciona-se com seu retorno à Costa do Marfim, onde possui sua editora?

A  luta do imaginário também é escolher os romances que queremos que as pessoas leiam. Lutamos pela independência na África, mas por qual independência lutamos? Queríamos a terra, a administração, as matérias-primas. Mas, no fim, o que fizemos foi prolongar o sistema de exploração. Apenas trocamos o colonizador branco por governos negros, porque não mudamos o sistema educacional, de saúdem, não discutimos o que comemos, a religião. E na literatura, não retomamos nossos autores. Ou seja, os autores africanos dos anos 50 foram publicados por editoras francesas ou inglesas, e continuam sendo. Não escolhemos os livros que queremos ler. Foi isso que me fez criar com dois amigos a editora, a ideia de que nós também deveríamos escolher os livros que queremos ler e libertamos os autores antigo, comprando seus direitos e fazendo novas edições localmente.