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Da Redação
Publicado em 27 de junho de 2015 às 09:00
- Atualizado há 2 anos
Quem passava todas as manhãs pela Praça da Sé e via aquela jovem com o corpo completamente pintado de prata não imaginava quantas histórias estavam por trás daquela estátua humana. Fruto de um de amor nada convencional - seus pais se conheceram enquanto estavam internados em um hospital psiquiátrico em Feira de Santana - a estudante Adriana Nunes Quintiliano, 25, morou durante 18 anos no abrigo Lar da Criança, no bairro da Vila Laura, em Salvador. Como perdeu os laços com os pais, Adriana divide a experiência da espera com as 56 crianças e adolescentes em Salvador que, embora ainda estejam disponíveis no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), provavelmente não serão adotadas. Segundo o juiz da 1ª Vara da Infância e Juventude, Walter Costa Júnior, elas têm entre 5 a 17 anos e não se encaixam no perfil de quem adota. “Geralmente preferem meninas brancas ou pardas, recém-nascidas ou no máximo com 2 anos”, afirma. Adriana Quintiliano, 25 anos, no Lar da Criança, onde viveu até os 18; após trabalhar como estátua humana no Pelô, hoje atua em um site de entretenimento e sonha em cursar design (Foto: Mauro Akin Nassor/ CORREIO)Adriana foi mais uma jovem negra integrante desse quadro. Ela chegou ao Lar da Criança recém-nascida. Como toda criança, jogava futebol e empinava arraia. Mas com o início da adolescência, começou a enxergar o outro lado da vida no abrigo. “Ficava preocupada quando via que muitas crianças iam embora e eu nunca ia”, narra. Depois da festa do seu aniversário de 15 anos - com direito a baile e príncipe –, os pensamentos em relação ao futuro e em como seria sua rotina fora da casa eram constantes. Adriana alternava momentos de ansiedade, quando lembrava de que precisaria sair, e de tristeza, porque já estava acostumada com o lar. O que não a impediu de planejar o futuro. Foi bolsista em dois colégios particulares, e não se sentia uma “aluna diferente”. Quando menos esperava, teve uma reviravolta em sua história ao saber que tinha mais um sobrenome, o Quintiliano. A descoberta aconteceu quando o Lar da Criança mudou temporariamente a sede, já que a principal estava em reforma. A proprietária do novo imóvel alugado pelo abrigo, em Cajazeiras VI, costumava dizer que a menina parecia com alguns “conhecidos em Feira”. A diretora do lar, Iraci Coimbra, resolveu investigar. Acabou descobrindo a certidão de nascimento original da garota. Por causa dessa descoberta que Adriana pôde conhecer parentes biológicos, que moram em Feira. Enquanto isso, do outro lado de Salvador, mais um jovem não adotado enfrenta as mudanças da vida pós-abrigo. Natural de Feira e criado desde os 4 anos na capital, Wellington Guerra, 20, tem na bagagem passagens por um projeto social e um abrigo. “Criado pelo mundo”, como costuma dizer, Wellington conviveu com a mãe até os 7. Do pai, tem vagas lembranças. Quando menino se considerava “liberal demais”, a ponto de desafiar conselhos maternos. Experimentou cocaína, cola e maconha. Por pouco não fumou crack, já que um educador o levou ao projeto Fundação Cidade Mãe em 2006 com 11 anos. GuinadaApós fugir do projeto com outros meninos, Wellington foi encaminhado em janeiro de 2008, aos 13 anos, para a Associação Recriar, instituição que acolhe apenas meninos de 7 a 13 anos, na Ribeira. A nova rotina era regrada: às tardes, os garotos iam à escola e, caso não andassem na linha, ficavam de castigo. “O Recriar me deu disciplina e me ensinou a ter sempre objetivos na vida e a sonhar por eles”, afirma Wellington. Wellington conta como comprou sua casa após se tornar independente (Foto: Robson Mendes/ CORREIO)Apesar de ter notado mudanças no seu comportamento durante os cinco anos em que viveu no Recriar, viu apenas um dos meninos ser adotado. Segundo a presidente da instituição, Eliete Alves de Morais, de 2008 – ano de inauguração da casa - até maio de 2015, dos 50 adolescentes que passaram por lá, somente um foi acolhido por uma família. “As pessoas acham que as meninas são mais fáceis de serem educadas”, avalia. Como qualquer garoto brasileiro, Wellington também sonhou em ser jogador de futebol. A agilidade lhe dava condições para ser um lateral direito que, segundo ele, “dava muitos passes para gol”. Passou pelas categorias de base do Galícia e do Redenção, mas não seguiu carreira. Segundo ele, por “falta de visibilidade”. Porta de saídaAo entrar em contato com os familiares de Adriana em Feira, Iraci tentou aproximar a garota deles. De tanto insistir, a estudante resolveu conhecer os parentes, mas sentiu desconforto em ter somente o sobrenome em comum com eles. Nos finais de semana, frequentava a casa da tia paterna para “ver como era a vida dela”. Adriana conta que foi bem recebida pelos Quintilianos. Porém a convivência diária não foi como a esperada. Por isso, decidiu dividir uma casa, na Cidade Nova, em Salvador, com mais cinco “irmãos do lar”, todos maiores de idade. A residência é mantida pelo Lar da Criança para jovens que acabaram de sair e não têm para onde ir. Enquanto seus irmãos dormiam em beliches no único quarto, ela ficava na sala. “Tínhamos o sonho de construir uma casa grande, onde todo mundo tivesse seu quarto”, lembra.SobrevivênciaCom a maioridade, os jovens abrigados buscam alternativas para viver por conta própria. O caso de Adriana não foge à regra. Ela teve que usar a criatividade para conseguir dinheiro. “Já estava fora do lar e não conseguia emprego. Daí tive a ideia de fazer estátua humana no Pelourinho”, conta. O tempo que ficava parada em cima de um banco de madeira lhe rendia o suficiente para alugar um quarto na Vasco da Gama. Em turno oposto ao trabalho no Centro, percorria a cidade de bicicleta entregando currículos. Deu certo. Hoje, trabalha em um site de entretenimento e continua cheia de sonhos. “Quero fazer faculdade de Design, continuar estilosa, ter minha casa ou meu apê do meu jeito”, ri. Já Wellington buscava a independência desde os 16 anos, apesar de ainda viver no Recriar. Trabalhou como jovem aprendiz em uma empresa de engenharia e juntou R$ 5 mil, em um ano e quatro meses, para comprar uma casa. Alcançou o objetivo com 18 anos. Saiu do abrigo e, com a ajuda do educador Adilson Santa Luzia, do abrigo em que vivia, foi à procura de imóveis baratos pela cidade. A casa é o orgulho de Wellington. Ele conquistou o que muitos brasileiros de sua faixa etária e criados pelos pais não conseguem: comprar a própria casa. O imóvel custou R$ 4.500. Tem sala, cozinha, banheiro e dois quartos. Para pagar as contas, é office boy. Aos 20, os próximos passos de Wellington estão planejados: começar a cursar faculdade de Logística, para qual foi aprovado, e adotar o irmão de 14 anos que ainda vive no abrigo Recriar com a mesma expectativa que ele teve um dia. >
RepúblicasEm fase de implantação na capital baiana, as chamadas repúblicas, segundo jargão usado pela área social do poder público, são casas destinadas a jovens que alcançaram a maioridade e estão em processo de desligamento das instituições de acolhimento, sem a possibilidade de retorno à família biológica ou de adoção.>
De acordo com a diretora de Políticas Sociais da Secretaria de Promoção Social e Combate à Pobreza (Semps), Juliana Portela, a primeira república, no Largo 2 de Julho, abrigará seis jovens - capacidade estabelecida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Todos de 18 a 24 anos e que estão de saída da Fundação Cidade Mãe, um dos abrigos conveniados da Semps. Com previsão de abertura para final de julho deste ano, a casa terá as despesas pagas pelos cofres do município.>
Juliana Portela diz que todas as entidades que tiverem interesse em se habilitar para se tornar república e receber recursos da prefeitura devem firmar convênio com o município. Hoje, das 22 unidades do tipo em Salvador, apenas metade é conveniada. “Vamos lançar edital até 15 de julho e convidar todas as entidades que prestam acolhimento a regularizar sua situação”, explica a diretora.>
Cada criança abrigada em instituições parceiras do município custa R$ 518 para os cofres públicos - R$ 90 do governo federal, R$ 240 do estadual e R$ 188 da prefeitura. A Lei da Adoção (nº 12.010/2009) determina que as crianças não podem ficar mais de dois anos em abrigos de acolhimento, exceto se houver alguma recomendação judicial.>
A legislação também estabelece que, a cada seis meses, a situação da criança dentro dos abrigos deve ser revisada pela Justiça. As instituições de acolhimento precisam enviar relatórios semestrais para que o poder Judiciário tenha conhecimento de cada caso específico. A partir daí, o juiz responsável pelo caso indicará se a criança ou o adolescente será encaminhado para adoção, se pode voltar para a família de origem ou, ainda, se deve permanecer no abrigo.>
Por recomendação judicial, as crianças que perderam o elo com a família e não tiveram chances de ser adotadas, devem continuar acolhidas nos abrigos, mesmo que a lei estabeleça dois anos como prazo máximo de estadia. “A casa de acolhimento pode ficar com o jovem mesmo que ele tenha mais de 18 anos. Não podemos deixar ninguém na rua”, reforça Juliana Portela. >