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Roberto Midlej
Publicado em 7 de março de 2016 às 14:12
- Atualizado há 2 anos
Gersonice Azevedo Brandão nasceu dentro do Terreiro Casa Branca, em 16 de dezembro de 1945. Filha daquele lugar, Sinha, como é hoje conhecida, passou a ser também uma espécie de grande mãe por ali. >
“Eu sou uma equede. E uma equede é uma mãe. Então, não me vejo em outra função dentro do axé. Porque eu sou mãe. E não sei mais separar a mãe genética da mãe religiosa”, diz Mãe Sinha, no livro Equede - A Mãe de Todos (Barabô/174 págs./R$ 100), que será lançado amanhã, às 19h, no Terreiro Casa Branca, na Avenida Vasco da Gama.Mãe Sinha é equede no Terreiro Casa Branca, primeira casa de candombléaberta em Salvador, tombada pelo Iphan em 1986 (Foto: Dadá Jaques/Divulgação)A equede é uma das principais administradoras de um terreiro. Mãe Sinha diz que seu dia a dia, no axé, é como a de uma mãe, que, numa casa, é a primeira a acordar e última a dormir. Nos dias de festa, então, o trabalho é mais intenso: “Sou responsável por deixar tudo preparado. Então, vou à feira, faço compras, ajudo a arrumar a casa. Preparamos tudo para o líder”.>
É Mãe Sinha que está sempre ao lado de Mãe Tatá de Oxum, ialorixá da Casa Branca, especialmente antes dela incorporar uma divindade. A equede tem, entre outras funções, o papel de preparar a roupa de Mãe Tatá para os rituais. Bem como a responsabilidade de zelar por ela durante o transe.>
MemóriaSinha diz que decidiu escrever o livro para preservar a sua memória e a do terreiro, onde passou toda a vida: “A gente vai esquecendo umas coisas... e tem muita coisa que a gente não quer esquecer, né? Muita coisa que quero deixar para os mais novos e para os meus netos”, justifica.>
Para concluir o livro, ela contou com a pesquisa do jornalista Alexandre Lyrio e do designer e fotógrafo Dadá Jaques, ambos da equipe do CORREIO.>
“Embora seja uma autobiografia, há um mundo inteiro por trás da história dela. Não é só a vida de uma pessoa, mas de muitas pessoas”, diz Dadá. O designer aponta ainda outra virtude do livro: “Não é uma visão de alguém de fora do candomblé. Não é uma visão de um pesquisador ou de um antropólogo, mas de alguém que vem do terreiro”. >
Já Lyrio, que também é editor da publicação, diz que se preocupou em preservar a linguagem original da biografada: “É um texto falado dela e que vai interessar mesmo àqueles que não são iniciados no candomblé. O texto dela é simples para quem é da religião, mas muito rico. E meu papel foi deixá-lo acessível a todos os leitores”.FotosAlém do texto da Equede Sinha, o livro tem um farto material gráfico, com mais de 200 fotos, incluindo algumas inéditas (de Dadá Jaques) e outras de acervos como o da Fundação Pierre Verger e do próprio terreiro.>
As imagens mostram os diversos ambientes da Casa Branca, incluindo a cozinha do axé, definida no livro como “o melhor lugar da casa”.>
“Não se faz nada no candomblé sem comida e bebida. A cozinha é o coração da casa de todo axé. É ali que, além de fazer as comidas dos orixás, se faz também a comida dos ‘pecadores’, como costumo brincar”, diz Sinha.>
Há também registros da vida pessoal da religiosa, como uma foto ainda bebê, no colo da mãe, Maria da Conceição. Vovó Conceição, como se tornou conhecida, chegou à Casa Branca aos 27 anos, oito antes do nascimento de Sinha. >
“Minha mãe entrou para o candomblé por causa de problemas de saúde. Ela não se tratou pela medicina tradicional. Alguém sugeriu que ela precisava se cuidar espiritualmente”, lembra Sinha. Conceição curou-se e, finalmente, pôde ter filhos. Acabou passando os 54 anos seguintes frequentando a Casa Branca. >
E Sinha seguiu o destino da mãe: está no terreiro há 70 anos. “Sou filha de Xangô e de Iansã. Recebi meu icomojadê aos 7 anos de idade”, diz a equede. Icomojadê é o primeiro ritual a que se é submetido no axé. >
SincretismoNo livro, Mãe Sinha dá demonstrações que o candomblé pode conviver harmonicamente com outras religiões, como escreve no texto Quando o Amém Vira Axé: “A tradicional missa de Oxóssi acontece na Igreja do Rosário dos Pretos. Missa do povo de santo em igreja católica só podia ser diferente, né? E é. É quando o amém vira axé”. >
A mesma Igreja do Rosário dos Pretos é cenário de outras demonstrações do sincretismo. Ali, acontecem missas promovidas pelo povo santo dedicadas à santos católicos: São Jorge, São Miguel, São Pedro e São Jerônimo.>
Embora reconheça que o candomblé ainda seja alvo de preconceito e intolerância, Mãe Sinha diz que hoje a sociedade aceita sua religião com menos resistência: “Atualmente, temos mais consciência de nossa identidade. Sabemos que temos os mesmos direitos de todos os outros”.>
Ela lembra que há poucas décadas crianças não podiam frequentar os terreiros: “Achavam que o candomblé era prejudicial aos meninos. Para funcionar, um terreiro precisava de autorização policial. Por todas essas dificuldades, o terreiro tornou-se um espaço de resistência”, diz. >