Jornalista investiga roubo de obras milionárias na Chácara do Céu em A Arte do Descaso

Cristina Tardáguila, 35, resolveu investigar por conta própria o caso e transformá-lo no livro-reportagem

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  • Roberto Midlej

Publicado em 15 de fevereiro de 2016 às 13:51

- Atualizado há um ano

No meio da tarde de uma sexta-feira que iniciava o Carnaval de 2006, quatro homens armados entraram no Museu da Chácara do Céu, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. O grupo rendeu os funcionários e visitantes que estavam no local e foram em busca das obras que lhe interessavam. Levaram de lá um quadro de Salvador Dalí (1904-1989), um de Monet (1840-1826), um de Matisse (1869-1954) e dois de Picasso (1881-1973), que, juntos, superavam os US$ 10 milhões.(Foto: Leo Aversa/ Divulgação)Embora tenha ganhado repercussão na mídia e na sociedade durante alguns dias, o roubo à Cháchara do Céu jamais foi solucionado e acabou caindo no esquecimento. Atenta e muito curiosa, Cristina Tardáguila, 35, jornalista mineira radicada no Rio de Janeiro, resolveu investigar por conta própria o caso e transformá-lo no livro-reportagem A Arte do Descaso (Intrínseca/R$ 40/192 págs.).Formada em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, a autora passou pelas redações de O Globo e Folha de S. Paulo, além da revista Piauí.

No livro, que ganha contornos de um thriller, Cristina banca a investigadora e critica o descaso das autoridades e da sociedade com o roubo. “A Polícia Federal, imediatamente após o crime, distribuiu um comunicado por fax para os aeroportos. Mas nesse comunicado não havia sequer uma descrição das obras roubadas”, diz a autora.O que motivou você a escrever o livro?A ideia do livro surgiu quando estava no jornal O Globo. Em 2011, fiz um levantamento de assuntos que deveriam voltar a ser abordados e, entre eles estava o roubo ao Museu da Chácara do Céu. Os cadernos de cultura normalmente são muito “pra cima”, falam da programação cultural e não abordam problemas da área, como a corrupção. Mas temos que lembrar que cultura move dinheiro e onde há dinheiro, há bandalheira. Por coincidência, a editora Intrínseca me ligou dizendo que ia publicar uma série de livros de não-ficção e me convidou para escrever um deles. No livro, em alguns trechos, você se revela muito mais uma investigadora policial que uma repórter. Você faz alguma grande revelação no livro?Na apuração, descobri que aquele não havia sido o primeiro roubo à Chacara. Em 1989, havia tido um assalto e levaram várias obras, entre as quais estavam duas que novamente seriam roubadas em 2006. Esse roubo foi divulgado pela imprensa na época, mas a Polícia Federal não o mencionava no novo inquérito. As peças roubadas em 1989 foram encontradas em um apartamento no Rio. Na ocasião, cinco homens haviam sido presos e quatro já estão mortos. Você conheceu esse homem que está vivo?Sim, decidi ir atrás dele e dei uma de investigadora. Mas não há nenhuma suspeita de que ele tenha participado do roubo de 2006. Ainda assim, incontestavelmente era importante que ele fosse ouvido pelos investigadores desse segundo roubo, já que duas telas já haviam sido levadas em 1989 e voltaram a ser roubadas em 2006. E ele havia participado daquele roubo de 1989. Mas ele nunca foi ouvido. A Polícia Federal ignora completamente no inquérito atual o assalto de 17 anos atrás.O livro faz referência ao “descaso” em relação ao crime. De quem foi esse descaso?A Polícia Federal, por exemplo, imediatamente após o crime, distribuiu um comunicado por fax para os aeroportos. Mas nesse comunicado não havia sequer uma descrição das obras roubadas. Não havia sequer nesse documento uma imagem das obras. Isso dificultava a identificação delas nos portos ou aeroportos. O governo federal também demonstrou descaso. A Chácara é um museu federal, que está sob a guarda do Ministério da Cultura. O presidente do Departamento de Museus e Centros Culturais (Demu) se limitou a fazer uma nota para o Jornal Nacional no dia do roubo e em seguida embarcou para Porto Alegre, onde passou o Carnaval com a família. E o governo federal, como agiu?Gilberto Gil, então ministro da Cultura, estava no Carnaval de Salvador e recebeu o telefonema do presidente do Demu. Ele ligou então para o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que acionou o Polícia Federal, que, por sua vez, já estava acionada. Mas Gilberto Gil poderia ter feito um pronuciamento em rede para dar ao caso o destaque que merecia. Fiz vários pedidos formais de entrevista a Gilberto Gil, mas ele nunca quis falar.Os roubos de arte costumam ser encomendados por colecionadores e milionários?Nós cometemos um erro, que é glamourizar o roubo de arte. De acordo com o imaginário popular, o roubo de arte é encomendado por um milionário, da sala de sua mansão. Mas não é assim  e se trata de um crime muito grave. Para se ter ideia, segundo o FBI, o roubo de arte movimenta US$ 6 bilhões por ano no mundo.  É o terceiro maior mercado ilegal, atrás somente do tráfico de armas e do tráfico de drogas.Como está a investigação do roubo de 2006?O crime prescreve em 2026 e, segundo o procurador do caso, um processo como esse, em média, leva oito anos  no Judiciário. O problema é que ainda estamos na fase de inquérito. Falta ainda ser analisado pelo Ministério Público para, só depois, ser transformado em denúncia e, aí sim, ir para a Justiça, que pode ou não aceitar a denúncia. Mas o inquérito sequer foi concluído e há o risco, de o crime prescrever. A entrada do Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, que foi assaltado em 2006(Foto: Jaime Acioli/ Divulgação)O assalto de 2006 ao Museu da Chácara é um dos maiores da arte internacional?Segundo o site do FBI, é o maior roubo de arte do Brasil e um dos dez maiores do mundo. Nessa lista, o roubo à Chácara é o único da América Latina que está na lista. Os critérios para essa classificação não são muito claros, pois envolvem o valor, o número de obras, o nome dos autores das obras e vários fatores. Mas está entre os dez maiores.Em algum momento, você teve medo?Sim, eu e minha família tivemos medo. Sou casada e tenho uma filha de sete anos. Por isso, eu e a editora contratamos um outro repórter para me acompanhar em algumas situações mais complicadas. Quando fui encontrar aquele homem que havia participado do roubo anterior, eu senti medo, afinal eu estava diante de alguém que havia sido condenado pela justiça. Nessa ocasião, fui com Renato. Mas, felizmente aquele homem me atendeu muito bem, foi solícito e respondeu a tudo numa conversa de uns 20 minutos.