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Maysa Polcri
Publicado em 16 de maio de 2024 às 07:45
Quando recebeu o pedido de casamento na juventude, Antônia Ferreira, hoje com 83 anos, tinha em mente as fantasias do matrimônio eterno. Era, enfim, a concretização do “felizes para sempre” que ela sonhava. Mas, antes de completar 50 anos, ficou viúva por um revés do destino. O luto inesperado mexeu com a dona de casa: a morte pode estar mais próxima do que se imagina. Foi com isso em mente que Antônia decidiu contrariar a família e planejar os detalhes do que deve ser feito quando ela morrer.
A certeza de que seria uam boa escolha planejar logo os trâmites pós-morte veio, justamente, no enterro de um parente. Foi logo após a inauguração do Cemitério Bosque da Paz, em 2001, em Nova Brasília. Antônia ficou encantada com o espaço e decidiu escapar da cerimônia para contatar a administração do espaço. Foi escondida da filha mais velha, Eliana, que nunca gostou de falar sobre a hora da morte.
“Eu gostei muito [do cemitério], aí saí escondida da minha menina mais velha para resolver tudo. Chegou lá, eu não tinha o dinheiro todo e dividi em dois cheques. A gente nunca sabe, pode morrer a qualquer momento, aí vai dar trabalho para os outros”, relembra. Com as economias e o parcelamento, Antônia conseguiu comprar dois jazigos no cemitério, que estão reservados há mais de 20 anos.
“Não lembro quanto foi, mas, para a época, era muito dinheiro. Até hoje é caro”, comenta a aposentada. Ela tem razão. O planejamento anterior à morte, mesmo sendo tabu para muitos, ajuda os familiares enlutados a encarar as burocracias fúnebres. Em Salvador, um sepultamento completo pode custar R$ 22 mil. O valor é quatro vezes maior do que o rendimento médio mensal dos soteropolitanos, que é de R$ 4.518, segundo o Censo 2022.
Os planos de Antônia Ferreira logo ficaram famosos entre os conhecidos. Apesar de ninguém ter pedido diretamente, ela já emprestou duas vezes um dos jazigos comprados no início dos anos 2000. A aposentada só não deixa o de cima ser usado por outra pessoa. Esse é exclusivo da dona. “O de cima tem que ficar livre porque eu posso morrer e precisar”, diz a idosa com naturalidade.
“Quando a amiga de uma das minhas filhas morreu, eu vi a agonia da família para procurar o cemitério e arranjar o dinheiro, eu ofereci o lugar emprestado. Meu pai sempre dizia que, quanto mais a gente empresta, mais a gente vive”, conta bem humorada. O sepultamento aconteceu e, oito anos depois, outra pessoa foi enterrada no local graças à generosidade de Antônia. A primeira ossada foi retirada do jazigo para dar espaço ao outro enterro.
Falar sobre a morte não deixa Antônia triste. A aposentada, inclusive, se diz preparada para quando sua hora chegar. “Não tenho medo da morte, não. Na hora que ela quiser vir, eu estou pronta para ir. Não quero negócio de tristeza. Para quê? Já vivi tanto”, afirma. O lamento de parentes não faz parte dos planos do sepultamento da aposentada. “Não quero choro", avisa ela, que já deu dica até da trilha sonora que quer no velório. "Gosto muito de Roberto Carlos”.
E se engana quem pensa que Antônia só comprou o jazigo e nunca mais passou por lá. Em um enterro recente, ela aproveitou a oportunidade para checar como estava o futuro lar e não gostou nada do que viu. Isso porque haviam plantado uma muda de manjericão, que já tomava parte considerável do espaço ao redor do túmulo. O problema é que a aposentada não suporta manjericão.
"Fiquei com uma raiva. Fui em um enterro e, quando estava lá, decidi ver como estava minha carneira [espaço reservado aos sepultamentos]. Quando vi, plantaram uma roda de manjericão, que tomava tudo. Logo, a planta que eu não gosto", conta aos risos. Felizmente, quando passou pelo cemitério novamente viu que a planta não estava mais lá. "Não cheguei a reclamar, mas ainda bem que tiraram", diz aliviada.
A atitude de Antônia ainda é pouco frequente. Conversar sobre a morte é um tabu para 73% dos brasileiros, segundo uma pesquisa do Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep), feita em 2018. Mais da metade das pessoas, 63%, acreditam que a morte está, sempre, associada à tristeza.
Os trâmites da morte de Nancy Luz Temporal, de 90 anos, também estão encaminhados. No caso dela, a escolha foi pela cremação. Na verdade, a decisão foi tomada pelo marido já falecido há cerca de dez anos e acatada pela idosa. "Foi meu marido que resolveu tudo. Ele pagou a minha cremação e a dele. Na época, foi uma fortuna. Não quero dar trabalho para ninguém depois que morrer", diz Nancy, que revela não ter medo da morte. "Eu tenho medo de não conseguir mais ser ativa em vida, isso sim", ressalta.
Barbara Bembem, gerente do cemitério Jardim Da Saudade, explica que o plano funerário do cemitério, depois de pago, não sofre reajustes. "É um valor fixo e a emissão dos boletos é imediata. A entrada é mais 35 parcelas. Todo aparato com relação a cremação (cerimônia, capela, cerimonialista, cremação, urna para colocar as cinzas e o velório está incluso", diz. O título previdenciário de cremação, como é chamado, custa R$10,6 mil. O plano anual é pago por 160 pessoas atualmente no cemitério.
Pensar sobre a morte e, mais do que isso, planejar como será o fim da vida, não é sinônimo de lamentação para mulheres como Nancy Luz e Antônia Ferreira. Ambas fazem questão de ressaltar o quanto amam viver e ser ativas. Nancy por exemplo, gosta de ir às compras e faz aula de bordado. Tudo para manter o corpo e mente ocupados.
"Eu gosto muito da vida. Sempre fui muito feliz e sou ainda. Não tenho aborrecimento, briga, nada disso. Eu faço bordado, faço aula na igreja com outras colegas toda semana. Não posso ficar parada. Hoje mesmo fui ao mercado fazer as compras da semana", diz Nancy.
O CORREIO pediu aos outros cemitérios privados de Salvador quantas pessoas pagam, atualmente, planos funerários, mas ainda não obteve resposta.