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Nilson Marinho
Publicado em 4 de julho de 2025 às 06:11
É quase impossível saber a origem de um meme. Uma vez criado, ela se espalha como rastilho de pólvora pelo o mundo inflamável, fértil, ácido, criativo e tóxico da internet. Ganham novos ‘edits’ e legendas, chegam aos mais diversos públicos, pelas mais variadas plataformas. Recentemente, uma cidade baiana ganhou os holofotes da web como nunca antes, para o bem ou para o mal. >
Para o bem, porque agora Xique-Xique, localizada no centro-norte da Bahia, ganhou projeção nacional, ao menos entre os mais atentos às tendências das redes sociais. Para o mal, porque o município banhado pelo Rio São Francisco acabou associado a um título que não lhe pertence: o de lugar inóspito, marcado por atraso tecnológico e cultural.>
Na internet, circula a teoria conspiratória de que Michael Jackson estaria vivo e teria sido visto morando justamente em Xique-Xique. Diversos memes brincam com a ideia de que o rei do pop, famoso tanto pelo talento extraordinário quanto pelo estilo excêntrico, teria escolhido essa cidade baiana justamente por ser um lugar à margem da civilização, quase impossível de encontrá-lo.>
Vídeos gerados por inteligência artificial, que em alguns casos confundem os usuários quanto à veracidade das imagens, têm retratado cenas em que jovens de Xique-Xique protagonizam conflitos geracionais com seus familiares. Na maioria dessas produções, tanto o cenário quanto os diálogos sugerem situações marcadas por dificuldades financeiras e um retrato estereotipado de atraso intelectual. “Ninguém me entende aqui em Xique-Xique, Bahia”, dizem os personagens colocados como “transgressores” ao serem incompreendidos pelos seus familiares.>
De acordo com dados do Google Trends, a cidade de Xique-Xique registrou um pico de interesse em pesquisas na plataforma na semana de 8 de junho deste ano, atingindo o nível máximo de popularidade, com índice 100 numa escala de 0 a 100. Embora o relatório não indique os motivos exatos para o aumento das buscas, foi justamente nesse período que vídeos feitos por IA, com personagens xiquexiquenses, viralizaram nas redes sociais.>
Xique-Xique teve outros momentos de destaque nos últimos meses, com altos índices registrados também nas semanas de 1º e 29 de dezembro de 2024. Nesse período, uma nova onda de memes tomou conta das redes sociais, alimentando a teoria conspiratória de que Michael Jackson não apenas está vivo, mas estaria morando em Xique-Xique, falando português fluentemente e se preparando para uma suposta "vingança" contra o rapper P. Diddy, preso em setembro daquele ano, acusado de associação criminosa, tráfico sexual e de liderar uma rede ilegal de prostituição.>
Foi também nesse período que a influenciadora digital Laura Desterro deixou Itacaré, no sul da Bahia, e percorreu cerca de 700 quilômetros de moto com a “missão” de descobrir se o Rei do Pop estava mesmo escondido em Xique-Xique. Em um vídeo publicado no Instagram, ela anunciou a viagem de forma bem-humorada. O conteúdo viralizou: ultrapassou 129 mil curtidas e somou mais de 1,4 milhão de visualizações.>
“Eu conheci Xique-Xique pelos memes na internet. Tudo começou com aquele do Michael Jackson, que dizia que ele estava escondido em Xique-Xique, na Bahia. Por ser uma cidade distante, bem no interior, isso me despertou curiosidade. Como estava sendo muito comentada nas redes sociais e ninguém sabia ao certo como era, nunca tinha visto uma foto ou vídeo da cidade, fiquei com vontade de conhecer. Queria ver como era, o que tinha lá, se havia atrações turísticas, essas coisas”, conta.>
Antes de chegar, a influenciadora imagina encontrar um cenário clássico que muitos associam ao sertão nordestino e o que os memes também reforçaram: uma cidade pequena, de chão batido, com pouca estrutura e acesso limitado à tecnologia.>
“Achava que as pessoas de lá nem tinham muito acesso à internet, aos memes. Talvez por isso a piada com o Michael Jackson escondido em Xique-Xique tenha viralizado, por ser vista como uma cidade remota, distante de tudo. Mas minha chegada foi espetacular, eu não esperava ser recebida daquela forma. Antes mesmo de chegar, quando comecei a postar nas redes o caminho que estava fazendo, já comecei a receber muitas mensagens do pessoal dizendo que queria me ver, que estava ansioso com minha chegada, oferecendo almoço, comida, passeio...”, completa Laura.>
A experiência foi tão marcante que a influenciadora decidiu eternizar o momento com uma tatuagem com o nome da cidade. “A ideia de um lugar isolado caiu por terra. O povo de Xique-Xique é engajado, atualizado e tem uma cultura linda. Me encantei completamente. O sertão é esplêndido. As dunas, o Rio São Francisco, o nascer e o pôr do sol... Foi a soma de tudo isso que me fez me apaixonar pela cidade. E foi por isso que tatuei, pra levar comigo essa lembrança pra sempre”, finaliza.>
O jornalista e pesquisador Edinaldo Mota Júnior, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), classifica a viralização da cidade baiana como algo curioso e multifacetado. Ele conta que, à primeira vista, foi fisgado pelo humor escrachado, pelas piadas e pelo tom non-sense típico da cultura das redes. A sonoridade singular de “Xique-Xique”, com sua repetição e chiado, diz, pode ter sido um dos fatores que impulsionaram a viralização dos memes.>
“Quanto à escolha da cidade, tenho duas apostas. Creio que seja em razão do X de Xique-Xique, que remete a algo extremamente distante no próprio alfabeto, algo que demora a chegar. E também a sonoridade da palavra, a sua dupla repetição e seu chiado quando se emite a palavra. Essa qualidade “estranha” é o ingrediente ideal para as viralizações. Muitas pessoas vão questionar se existe mesmo uma cidade com esse nome. Em um dos vídeos que consegui mapear no TikTok, um streamer utiliza aplicativos de geolocalização e reage com bastante surpresa ao atestar a real existência de Xique-Xique”, conta.>
Segundo o pesquisador, grande parte desses memes reforça estigmas que retratam o interior nordestino como um território marcado pela precariedade, expondo conflitos históricos ainda presentes em diversas cidades da região.>
“O que considero mais problemático são os discursos que tentam apagar a importância de Xique-Xique como um território autônomo e real. Quando os memes falam, por exemplo, que a crise geopolítica gerada a partir do novo governo Trump não atinge Xique-Xique, estão dizendo que o território não importa para a ordem política, econômica e social. Mas sabemos, ao contrário, que o território é importante pelo menos para os quase 45 mil habitantes da localidade e que as decisões políticas incidem, sim, sobre a cultura da cidade. Se a alta do dólar aumenta o preço do feijão, então a geopolítica altera as condições sociais de Xique-Xique e de qualquer lugar”, lembra.>
Filemon Nery Nepomoceno Filho é dentista e estudante de medicina. Natural de Xique-Xique, ele se mudou para Salvador pela primeira vez em 2005 para cursar o Ensino Médio. À época, ao mencionar a sua cidade natal com os colegas, as reações variavam entre piadas e desconhecimentos.>
“Uma professora percebeu que eu era aluno novo e perguntou: ‘Qual é o seu nome? De onde você veio?’ Eu falei meu nome e respondi: ‘Sou de Xique-Xique’. Ela ficou em silêncio. Ao mesmo tempo, a turma do fundão fazia barulho, e ela interveio batendo palmas e dizendo: ‘Vamos parar com a bagunça aí na feira de Xique-Xique!’ Aquilo me deixou muito incomodado, porque minha cidade tem uma feira livre forte e bastante conhecida na região, e ela usou isso de forma pejorativa. Daí em diante, tudo mudou. Sofri muito bullying, o que contribuiu para o meu retorno”, recordou.>
Mais tarde, ao ingressar na faculdade de Odontologia em 2009, a situação não era muito diferente. Segundo ele, muitos só conheciam Xique-Xique pelas manchetes policiais da época, mas, hoje, com a cidade em alta no ambiente digital, o cenário mudou.>
“Diziam que era a terra da maconha, algo que já foi erradicado há muitos anos. Ou então perguntavam se era perto de Irecê. Na faculdade de Medicina, os colegas já reconhecem a cidade por outras referências, como a médica da Seleção Brasileira, Natália Figueiredo, ou a ex-atleta de judô Mayara Oliveira, que saiu no Globo Esporte.”>
Para Eder Bastos, diretor de comunicação da Prefeitura de Xique-Xique, apesar do tom humorístico e, às vezes, estigmatizante dos memes, a repercussão tem ajudado a colocar o município no radar de públicos que antes não o conheciam.>
“No Instagram da Prefeitura a gente começou a receber muitas mensagens e marcações, principalmente de pessoas das regiões Sul e Sudeste do país. Começamos a perceber um aumento significativo nas marcações e nas buscas pelo perfil da Prefeitura”, conta.>
Segundo ele, embora o turismo ainda não tenha sentido um impacto significativo em termos de visitantes, já houve casos de influenciadores digitais e blogueiros que vieram conhecer a cidade e produzir conteúdo, atraídos pela repercussão online. “Tivemos, por exemplo, a visita da blogueira Laura, que viajou de moto para cá e passou semanas explorando os pontos turísticos, a rotina da população e divulgando tudo nas redes. Ela até tatuou ‘Xique-Xique, Bahia’, o que mostra o quanto essa viralização pode gerar um vínculo afetivo com a cidade.”>