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Bruno Wendel
Publicado em 19 de maio de 2025 às 05:00
É fato: onde o Estado não está, o tráfico impera. No caso de Caraíva, em Porto Seguro, região do Extremo Sul da Bahia, as facções nadam de braçada. Uma prova cabal é a temida Anjos da Morte (ADM), que aterroriza moradores e indígenas. A organização foi criada dentro da Aldeia do Xandó, a partir de uma reestruturação do Bonde do Maluco (BDM) nas terras pataxós. E não menos grave: assim como acontece com os adolescentes das periferias de Salvador, os jovens indígenas são cooptados pela ADM e têm uma participação expressiva na facção, inclusive na execução de pessoas do próprio povo. >
Até outro dia, a fama terrível da Anjos da Morte estava restrita à região sudeste. Suas atrocidades vieram à tona no dia 10 deste mês, quando, numa operação que envolveu policiais civis, militares e federais, resultou na morte de duas pessoas, entre elas um dos gerentes da facção, Ramon Oliveira Cruz, 33 anos, o Alongado. “O restante se dividiu. Parte fugiu pelo mar de lancha. A outra foi em vários carros, passando por cima das aldeias, pelos matos e ainda ameaçou indígenas para não denunciar”, conta uma moradora antiga de Caraíva. >
Ela conta que uma das maiores facções do estado já havia se estabelecido no território indígena, ponto de partida para a criação da Anjos da Morte, que traz como símbolo a figura de um anjo segurando um fuzil. “O BDM já era uma realidade aqui, muito antes da pandemia. Não dá para dizer ao certo qual foi o motivo, mas houve uma separação e esse tal de 'Gordura' trouxe gente de fora, até de outros estados, juntou com alguns indígenas, a maioria com menos de 18 anos, e formou a Anjos da Morte”, conta a mulher, que cita o líder da ADM, Ullian da Silva Guimarães, o "Gordura", preso no dia 13, em Minas Gerais. >
"Gordura" é nativo da Vila de Caraíva. Filho do traficante "Biuzão", vivia numa casa perto do campo de futebol e cresceu no mesmo ritmo do pai, e já na adolescência era temido entre os ribeirinhos. Seus irmãos – um homem e uma mulher – seguiram também a mesma cartilha, mas não tiveram a sorte que dele: foram mortos pela polícia na cidade de Pindorama. >
Expansão >
A ADM estaria para o BDM, assim como BDM está para o Primeiro Comando da Capital (PCC). Ou seja, uma relação de parceria, que, além de transações comerciais de armas e drogas, inclui apoio logístico para enfrentamento de concorrentes, com fornecimento de suporte bélico e de efetivo. “É o que podemos dizer até o momento. O próprio BDM surgir dessa estratégia, de separação, para melhor expansão”, explica um policial civil da região do sul, ao lembrar que o Bonde do Maluco foi uma ramificação da extinta Caveira, que atuou por muitos anos em Salvador. >
Desta forma, além de Caraíva, a Anjos da Morte está em Arraial D’Ajuda, Trancoso, ambas também regiões turísticas de Porto Seguro, além de Santa Cruz Cabrália e diversos povoados, disputando com o Comando Vermelho (CV) e em alguns casos com o Mercado Povo Atitude (MPA). >
Indígenas recrutados >
O território Xandó é apenas uma das mais de 30 aldeias dentro da terra indígena de Barra Velha. O turismo na região Pataxó existe há mais de 50 anos, porém o fluxo intenso de turistas, principalmente nos últimos 10 anos, trouxe também às terras indígenas, o aumento do consumo de drogas. “Dentro do Xandó, a reserva está atormentada. Essa facção vem recrutando os jovens indígenas. Está dentro de Caraíva, Nova Caraíva, Pindorama, Coqueiro Alto”, diz um morador, que também é comerciante local. >
A cooptação desses jovens tem uma explicação. “Antes, os nativos tinham uma vida mais simples. Mas tudo mudou com esse turismo exacerbado. Hoje, eles querem ter apenas 1% dessa elite de milhões. Se querem sentar num restaurante, eles precisam pagar R$ 100 por um prato para fazer parte do próprio território. Por ser um local pequeno, essa discrepância é grande. Para se ter uma ideia, existe uma loja de grife na beira de um rio. E ela não é a única em Caraíva. São várias”, declara uma profissional de educação local. >
A informação é ratificada por José Augusto Laranjeiras Sampaio, presidente da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), organização não-governamental dedicada à defesa e à promoção dos direitos dos povos indígenas. “Realmente existem jovens recrutados pelo tráfico e hoje, a Aldeia Xandó é marcada pela presença de indígenas e não indígenas. Essa é uma preocupação das lideranças. Existe um conselho dos caciques que é contra e faz denúncias e pede providências”, declara Sampaio. >
De acordo com ele, “Porto Seguro é um pólo forte do turismo, seja do mochileiro, que vai consumir maconha, até o de alto luxo, que vai atrás de cocaína. Lá, existe droga para todo tipo de classe econômica. Já o crack é consumido pelos ribeirinhos”. Um biólogo diz que o “turismo é pautado em festas e drogas”. “O Centro Cultural Pataxó Porto do Boi, que é onde as comunidades expõem seus trabalhos, que poderiam ganhar dinheirinho, fica vazio, enquanto os turistas lotam os eventos particulares e em busca de entorpecentes”, conta.>
Além do trágico, o povo Pataxó ainda tem que lidar com os conflitos fundiários, segundo a Anaí. Nos últimos quatro anos, cerca de 15 indígenas foram assassinados, em crimes motivados por conflitos no território da Aldeia Mãe e pelo racismo. Além da intrusão de fazendeiros, que lucram sobre terras apropriadas ilegalmente com a produção agropecuária, o lobby do turismo no entorno de Caraíva e Porto Seguro, destinos vizinhos às aldeias, causam o aumento substancial do tráfico, alcoolismo e a deslegitimação dos modos de vida indígena.>
Posicionamentos >
Procurada, a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado da Bahia (SJDH) informou que tem conhecimento da participação de indígenas nas organizações criminosas. “O tráfico de drogas tem impactado diversas comunidades vulneráveis em todo o país. Infelizmente, as comunidades indígenas não estão imunes a essa realidade. Nesse caso, a denúncia está sob investigação. Contudo, é fundamental que eventuais casos de tráfico de drogas em comunidades indígenas não podem justificar generalizações que criminalizem as comunidades”, diz a nota enviada ao CORREIO. >
A SJDH informou que o “estado, por sua vez, deve continuar investindo em políticas públicas para garantir os direitos dos povos indígenas em seus territórios, na educação, saúde, cultura e, principalmente, nas questões relacionadas à demarcação de terras”. “Desde terça-feira (13), a SJDH, em parceria com diversos órgãos estaduais, federais e municipais, está atuando no território, através da Caravana de Direitos Humanos, com ações de promoção do acesso à justiça e voltadas à garantia de direitos”. >
A reportagem procurou também a Secretaria de Segurança Pública (SSP), mas até o momento não há respostas. >