As próteses 3D que devolvem a identidade a quem perdeu parte do rosto

Vítimas de tumores, acidentes ou doenças congênitas iniciam saga de anos em busca de próteses faciais na Bahia e encontram saída em SP

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  • Fernanda Santana

Publicado em 10 de março de 2024 às 07:00

Prótese de olho Crédito: Instituto Mais Identidade

Por um instante, o tempo parou para que Fábio Eça, 46 anos, olhasse seu reflexo em um espelhinho de mão. Desde o ano anterior, ele evitava aquela imagem — a pálpebra esquerda costurada para cobrir a ausência do olho perdido para um tumor. Era a hora do reencontro.

“Foi como se eu tivesse renascido”, lembra o assistente social sobre a sensação de ver, no lugar da cicatriz, a prótese de um olho. “Fiquei paralisado, atônito, aquilo foi retornar para minha identidade”, conta, quatro meses depois de receber o molde.

A busca por próteses faciais é uma alternativa para pacientes que sofrem de desfiguração facial depois da retirada de tumores, traumas ou episódios de violência. Aqui no estado, o serviço até é oferecido pela Faculdade de Odontologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e o Hospital Aristides Maltez, especializado no tratamento de câncer, em Salvador

Por restrições orçamentárias de ambos, no entanto, há baianos que viajam em busca de atendimento. O principal destino está a 1,8 mil quilômetros de Salvador, em um bairro da zona norte de São Paulo.

Em novembro do ano passado, o baiano Fábio chegou lá para receber a prótese produzida por uma equipe de cirurgiões-dentistas do Instituto Mais Identidade, organização sem fins lucrativos que doa próteses desde 2015.

Fábio recebeu prótese do olho esquerdo ano passado Crédito: Instituto Mais Identidade

Diagnosticado com um tumor maligno no maxilar, Fábio buscava por um molde para cobrir um dos olhos desde outubro de 2022, quando foi operado para se livrar do câncer. “Quando acordei da cirurgia, soube que o olho teve que ser retirado”. Na hora, ele só conseguiu pensar: “Antes um olho que a vida”.

Mas, em casa, o sangue já frio, o ânimo mudou. De volta a Apuarema, cidade onde mora e que fica a 340 quilômetros de Salvador, todos queriam saber o que aconteceu para que Fábio sempre aparecesse em público com um tampão ocular.

O médico que o operou até tinha indicado que ele buscasse uma prótese gratuita em Salvador, mas sem perspectiva de atendimento a curto prazo.

“Eu me fechei, não conseguia mais aparecer em público, deixei de fazer as palestras que fazia, as pessoas sempre me olhando”, recorda ele, que, então, lembrou de uma reportagem de TV sobre prótese facial.

Vasculhou na internet até encontrar os nomes por trás do procedimento. Animado, ele escreveu um e-mail para o instituto ([email protected]), que atua por demanda. A resposta positiva retornou em uma semana. Aquela acolhida era a esperança de Fábio, que se sentia como “um carro velho”.

Como funciona a produção da prótese

Todos os anos, mais de 30 mil novos casos de câncer na região da boca e face são diagnosticados no Brasil, de acordo com dados do Instituto Nacional do Câncer (INCA). Os casos mais graves podem exigir a remoção cirúrgica do olho, nariz, boca ou orelha.

Traumas, como violência e acidentes, e doenças congênitas também podem desconfigurar o rosto, o que afeta mecanismos funcionais dos seres humanos, como a fala, a alimentação, a respiração.

Mas a mais simbólica das perdas para esses pacientes é a autoestima. No rosto, estão as características que fazem de nós quem somos, é o primeiro elo humano com o outro.

O Instituto Mais Identidade atua com objetivo de devolver essa imagem. Os pacientes oncológicos são a maioria dos atendidos por lá.

Ao menos oito pessoas trabalham diretamente para entregar cada prótese facial, molde que pode custar até R$ 100 mil na rede privada. A primeira fase da produção começa com fotos dos pacientes, em estilo 3x4.

As imagens, depois, são processadas por um software. Nesse momento, acontece um processo de espelhamento da parte saudável da pessoa para a parte danificada ou uso de banco de imagens, no caso da perda do nariz.

Aí sim é possível iniciar a próxima fase - a impressão 3D de um protótipo de prótese.

Esse pré-molde é testado no paciente, antes de seguir para a fase final de produção: a manual. Nela, um dentista protesista trabalha, por três dias, na conclusão do molde. Todo o processo não leva mais que cinco dias.

Três meses antes de receber essa prótese, o paciente é submetido a uma cirurgia de fixação de pinos de titânio. Eles precisam estar ali para atrair, por imã, a prótese feita à base de silicone e outros magnetos.

Com parte do rosto devolvido, ainda que com as limitações da falta de movimento, os pacientes voltam a se reconhecer.

“É o instante em que eles realmente se sentem curados. Embora, no caso da visão, não seja algo recuperado. Ele pode não enxergar, mas a sociedade enxerga ele de uma outra formar”, compartilha o cirurgião-dentista Luciano Dib, um dos fundadores e presidente voluntário do Instituto Mais Identidade.

Desde os anos 90, Dib trabalha com pacientes oncológicos, mas se sentia impotente ao observar a tentativa de reabilitação deles. "Era um tratamento sem a reabilitação devida”.

Técnica dos anos 60 é 'ignorada' no Brasil

O ortopedista sueco Per Ingvar Branemark foi quem descobriu, em 1965, que era possível fixar próteses faciais e dentárias por placas de titânio — a técnica recebeu o nome de osseointegração e alavancou a carreira científica de Per.

Só que no Brasil, essa descoberta de quase 50 anos ainda está restrita a nichos profissionais e é desconsiderada pelos planos de saúde. Depois de dois anos, em média, os pacientes precisam receber uma nova prótese, pois a antiga é desgastada pelo tempo.

Per Ingvar Branemark à esquerda Crédito: Divulgação

“Essa área da reabilitação nem sempre é atendida, os planos de saúde não prevêem. Isso precisa ser discutido. E o instituto tenta suprir uma ausência. Além disso, é um grupo pequeno de especialistas que atuam nessa área”, afirma Dib.

Pelo Sistema Único de Saúde e nas instituições públicas de ensino, as barreiras seguem. O Hospital Aristides Maltez, por exemplo, tem a tecnologia e os profissionais para realizar as próteses. Falta o dinheiro, por uma assimetria entre o preço pago pela tabela do SUS a uma prótese e o preço real dela.

Questionados, o Ministério da Saúde e Faculdade de Odontologia da Ufba não responderam até o fechamento da publicação. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), por meio da assessoria, afirmou que enviaria os dados sobre o assunto em breve. A reportagem será atualizada quando isso ocorrer. 

“Acabamos centralizando o atendimento do paciente com câncer, então a demanda é muito grande, e o congelamento dos preços do SUS não acompanham”, avalia Lucas Silva, coordenador do setor de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Aristides Maltez

Sem encontrar alternativas na Bahia, Marlene Menezes, 67, aguardava desde 2008 uma prótese ocular. O tumor na pele avançou o rosto e lhe arrancou o olho esquerdo. Há três dias, ela está em São Paulo para receber os pinos de titânio. "Vou realizar esse sonho de rever meu rosto perfeito".

A primeira coisa que ela fará, depois de receber a prótese, é posar para uma foto. A imagem, então, será revelada e colocada em porta-retrato na sala de casa.

Marlene, à espera de uma prótese  Crédito: Acervo Pessoal

Como posso ajudar?

As doações são fundamentais para os serviços prestados pelo Instituto Mais Identidade. Pessoas físicas podem doar a partir de R$ 25 através da chave pix: 24.296.896/0001-66.