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Nilson Marinho
Publicado em 20 de agosto de 2025 às 07:09
O bancário aposentado Sérgio Maia carrega no peito memórias miúdas de quando morava com os pais no tradicional bairro dos Barris, em Salvador. Era um tempo de calçadas largas, preguiça de verão e silêncios preenchidos pela curiosidade. Nos dias em que a infância lhe pesava o tédio, Sérgio se encostava à janela do segundo andar da sua casa e deixava os olhos passearem pelo quintal vizinho, onde um senhor criava pombos. Não sabia ainda, mas ali começava um encantamento que atravessaria os anos feito as próprias aves em dia de céu limpo. >
Mas os ventos da vida mudaram o rumo da família, e os pais de Sérgio partiram em retirada rumo ao interior do estado. O menino, que havia se encantado com as pombas enjauladas, teve que se despedir, não só da casa dos Barris, mas também daquela rotina que tanto o fascinava. No dia da mudança, enquanto o caminhão engolia os últimos móveis, seu pai atravessou a rua para se despedir do vizinho. O criador de pombos, que já tinha notado o interesse do pequeno pelas aves, resolveu surpreendê-lo. >
“Ele deu ao meu pai um casal de pombos, dizendo: ‘seu filho vive olhando os meus pombos. Leve esse casal para vocês’. Fomos morar numa fazenda em Catu, que meu pai e meu avô haviam comprado juntos. Era época de férias escolares. Lá, meu pai mandou um carpinteiro construir um pombal, e assim começou minha relação com eles”, conta Sérgio.>
Já crescido, Sérgio voltou a Salvador para morar com os avós. Foi nessa fase que mergulhou de vez no universo dos pombos-correio, criaturas capazes de encontrar o caminho de volta para casa com uma precisão que beira o mistério. Fascinado por essa habilidade quase mágica, ele passou a frequentar a Biblioteca Central dos Barris, onde passava horas folheando livros e descobrindo tudo o que podia sobre a navegação dessas aves.>
Hoje, Sérgio é columbófilo de carteirinha, ou seja, aquele que cria e treina pombos-correio para competições. Oficialmente registrado em uma federação de columbofilia, ele segue regras técnicas e mantém suas aves identificadas com anilhas e documentos. Vivendo atualmente em Alagoinhas, ele cuida de um plantel com cerca de 350 aves, cada uma com seu tempo de voo e sua história nos céus. >
Não dá nome a todas, apenas aos mais ilustres: os reprodutores valiosos, os campeões de retorno ou os que encantam pela beleza. Aos jovens, vai conhecendo aos poucos, durante os treinos e competições. Até os cinco ou seis meses, alguns ainda passam despercebidos. Mas quando alcançam sete, oito meses de idade, Sérgio já os reconhece apenas no bater de asas, como se cada um carregasse no voo uma assinatura única.>
No Brasil, os columbófilos formam uma irmandade organizada, com clubes espalhados por várias cidades, todos com estatuto, regulamento e um calendário de campeonatos. Ter a carteirinha é mais do que fazer parte de uma federação: é assumir um compromisso com a criação responsável, seguir protocolos rígidos, registrar cada ave em bancos de dados oficiais e, acima de tudo, respeitar as regras.>
“Para treinar um pombo é preciso que a ave tenha de quatro a cinco meses, estar saudável e voar por 30 a 50 minutos ao redor do pombal. Começamos soltando a 10 km de distância e vamos aumentando: 15 km, 20 km, 30 km, 50 km, depois 75 km e 100 km. Damos alguns treinos de 100 km, um de 150 km e outro de 200 km”, conta.>
Na rotina de treinamento, logo cedo, Sérgio solta os pombos, limpa os poleiros e observa o voo livre das aves por cerca de 40 minutos. Depois, é hora da recompensa: água fresca, ração medida com exatidão e cuidado. Quando assobia ou sopra o apito, elas entendem o chamado e retornam, uma a uma, como se reconhecessem na voz do criador o caminho de volta. “Na época de reprodução, cuidamos dos filhotes, observamos os ovos e, se necessário, repetimos o treino à tarde, principalmente em período de campeonato”, acrescenta.>
Em Salvador, há dois clubes registrados na Federação Brasileira de Columbofilia, e é por meio dessas entidades que os campeonatos ganham forma. As provas são divididas por categorias, conforme a quilometragem percorrida pelas aves. As de velocidade vão até 300 ou 350 quilômetros. As de meio fundo cobrem entre 350 e 500. Já as de fundo exigem mais resistência: vão de 500 até cerca de 900 quilômetros de voo ininterrupto. Alguns clubes fazem provas de longo curso, acima de 1.000 km, chegando a 1.400 km. No de Sérgio, as aves vão até 890 km em linha reta, mas pela rodovia a distância aumenta uns 30%.>
As competições funcionam mais ou menos assim: os pombos são transportados em caixas ventiladas até os pontos de partidas, às vezes a centenas de quilômetros do ponto de origem. Lá, são soltos simultaneamente. Não há guia, nem pista, nem bússola. Só o instinto, a memória do ninho e uma habilidade de navegação que a ciência ainda tenta decifrar. Ganha a ave que retornar primeiro ao seu pombal, onde um anel com chip registra a chegada em um sistema eletrônico.>
“O pombo-correio tem instinto natural para retornar ao pombal, onde encontra proteção, alimento e, muitas vezes, o parceiro ou parceira. Ele se orienta por ondas magnéticas, cada região tem um padrão específico. Desde filhote, ele se acostuma com essas ondas e, quando é solto, busca reencontrá-las, seguindo até chegar ao destino”, explica Sérgio.>
Quanto ao retorno financeiro, ele é sincero: No Brasil, a columbofilia é movida por paixão. Quem cria, cria por amor. Raros são os que conseguem algum lucro, e viver disso, diz ele, não conhece ninguém. Já na Bélgica, na Espanha, na Alemanha e nos Estados Unidos, a história é outra: lá existem leilões disputados, venda de filhotes valiosos e prêmios generosos.>
"Tenho várias aves campeãs, de velocidade, meio fundo, fundo e o campeão geral, que é a soma de todas as categorias. Já fui campeão geral diversas vezes no meu clube. Participei também de competições nacionais em columbódromos, que são grandes pombais para provas com aves de vários criadores. Em Minas Gerais, no Columbódromo de Conselheiro Lafayette, fiquei em terceiro lugar nacional na prova de 510 km. Em 2021, numa prova de 640 km para a Paraíba, recebi cinco pombos juntos, um macho e quatro fêmeas, após nove horas e meia de voo. Foram os cinco primeiros colocados da prova”, conta.>
Quando conta que cria pombos para corrida, Sérgio já espera o espanto. A maioria das pessoas nunca ouviu falar em competições de pombos, muito menos que existem raças voltadas à performance e outras criadas pela beleza. Muita gente se surpreende, mas basta explicar com calma que logo vem o interesse.>
“É um tema que desperta curiosidade. Também ajuda a desmistificar a ideia de que pombo é praga ou prejudicial à saúde. O pombo-correio é tratado com medicamentos, recebe alimentação e cuidados adequados. É muito diferente do pombo comum, que vive sem manejo e pode transmitir doenças”, finaliza.>