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Elaine Sanoli
Publicado em 28 de julho de 2024 às 22:06
Durante todo o mês de julho, aos domingos, as ruas dos distritos de Santo Amaro se tornaram palco de manifestações culturais tradicionais. As aparições do Nego Fugido e das Caretas, hoje (28), marcaram o fim dos festejos do mês. Entre os becos e vielas do pequeno distrito do Recôncavo baiano, o Quilombo do Acupe recebeu de braços abertos os filhos da casa e os visitantes de diferentes lugares do Brasil para contar parte da sua história. >
Viajando quilômetros de distância, direto da capital paulista, a aposentada Vera Lúcia Queiroz, de 76 anos, não conseguiu ficar de fora dos últimos cinco festejos. "É a minha terra, onde eu nasci, e desde pequenininha eu admiro muito. Acupe é uma cidade muito rica em raízes culturais, tem o quilombo e a tocha de fogo entra aqui também", comentou.>
Segundo contou o professor e um dos líderes da associação por trás da manifestação do Nego Fugido, Monilson Mony, o movimento nasce a partir da mitologia, passada através das gerações por meio da oralidade. “É um mito de uma praga que chegou no período colonial aqui no Recôncavo. Essa praga, na verdade, é uma metáfora para falar da escravidão, do genocídio da população indígena e a escravização do povo negro”. >
Nas aparições, como é chamado o momento de apresentação das encenações, os participantes se valem da dança para representar a luta contra a escravização. “As ‘Danças de Quilombo’, foram criadas pelos senhores de engenho para coibir a fuga de escravizados para o Quilombo de Palmares e ainda existe em vários lugares do Recôncavo, mas aqui, especificamente, vai se associar a um ritual que acontecia secretamente por uma família de voduns, que é o que libertou os escravos”, relatou. >
As vestimentas dos participantes são baseadas em uma saia feita com folhas secas de bananeira e chocalhos espalhados pelo corpo, chapéu e colete de couro, para os caçadores. As “negas”, aparecem com uma bermuda branca e os rostos pintadas com a tinta preta extraída do carvão. Há representações da polícia e monarquia. O último dia das apresentações, marcou a prisão do rei. >
Na encenação, participaram os mais velhos e mais jovens, todos com a mesma força e entusiasmo. Dona Vera, por exemplo, aos 66 anos ainda participa ativamente das manifestações, há mais de 40 anos. Neste domingo, assim como ocorre em muitas edições, ela foi a única mulher a entrar na encenação como caçadora. “Eu me sinto orgulhosa de chamar e incentivar outras meninas para participar, porque isso é cultura e a gente não pode deixar essa cultura morrer. Essa cultura é minha e dos meus antepassados”, refletiu.>
A manifestação mobilizou filhos da casa que, apesar de já não morarem mais em Acupe, não perdem a tradição por um ano sequer. "No trabalho, eu tenho um domingo de folga no mês, eu peço a minha folga do último domingo de julho porque é a prisão do Rei. Queria muito vir nos outros dias também, porque estamos manifestando a nossa cultura dentro da cidade de Acupe", contou o Florisvaldo Ferreira, de 36 anos, durante a caracterização de capitão do mato. Ornamentado de capitão do mato, ele conta que desde os seus 12 anos participa dos festejos.>
Ao lado do pai, o pequeno Levi Ferreira, de 11 anos, apreciava a ornamentação com empolgação. Embora estivesse participando apenas como espectador nesta edição, o jovem já ouve desde sua casa sobre a importância da celebração do Nego Fugido e relembrou da ocasião em que saiu pelas ruas de Acupe a caráter. "Eu já saí uma vez, gostei muito, é muito legal sair de careta", comentou o pequeno. >
Desde a concentração, já se podia ver várias crianças, grande parte do corpo de participantes, percorrendo a sede do Nego Fugido do Acupe. “Durante o ano a gente recebe mais ou menos 40 crianças, mas quando chega julho, essa quantidade dobra de tamanho. Eles percebem que esse é o momento de estar aqui na casa, com o Nego Fugido e se integram e entregam a todo o processo da aprendizagem”, disse a pedagoga da associação, Isabela Sá. Ela conta que durante todo o ano as crianças são incentivadas a participarem ativamente da cultura da região de diferentes formas. “Durante o ano a gente realiza atividades socioeducativas voltadas para as relações da educação étnico-raciais, falando principalmente de uma educação antirracista”, completou. >
A aparição encheu os olhos da comunidade e dos visitantes que foram prestigiar o evento. Quem viu, saiu com a certeza de levar um pedacinho da história do Recôncavo consigo. “É importante para gente saber a nossa história, da nossa cultura local. Eu vejo muito sobre a região de Salvador, mas eu não sei como é em volta. Quando fiquei sabendo que existe mais além dali, eu procurei conhecer para saber mais a nossa história local”, afirmou o estudante soteropolitano Rodrigo Jesus, de 25 anos, visitando pela primeira vez no distrito Santo Amarense.>
Três viradas de rua após saída da associação Nego Fugido, já era possível ver diversos mascarados circulando na cidade. Entre as máscaras de borracha, mais recentes, viam-se as populares máscaras de papelão. >
Fernando Alves, de 44 anos, conta como produz os ornamentos desde os 10 anos. “Eu pego o barro branco, depois pego o saco de cimento vazio e forro com óleo e farinha de trigo e ajeito dando a forma da máscara”. Em dias de sol, o artesão consegue confeccionar até 10 máscaras para serem usadas pelo grupo das Caretas no desfile. “Eu me apeguei, eu sou apaixonado pela tradição. Até hoje eu faço por isso: sou apaixonado pela tradição da minha terra”, disse, orgulhosamente.>
A tradição é datada de meados do século XIX. Willes dos Santos, coordenador do Grupo Cultural Caretas de Acupe, contou que existem duas possíveis histórias sobre a origem do grupo, passadas de pai para filho. A história mais conhecida, conta que um escravizado deu origem ao costume ao entrar na festa do senhor de engenho com uma máscara de careta, destoando dos convidados que possuíam fantasias inspiradas nos europeus. >
Por outro lado, diz-se que no mês de agosto, muitas pessoas costumavam morrer na região, a tradição nasce como forma de evitar os óbitos. “As Cracrucais eram as mulheres que se vestiam de mandús, daí surgiram também as caretas que faziam um ritual em julho para que no mês de agosto não morresse muita gente, essa é uma história em estudo”, contou.>
Para Wullies, a tradição retoma mais do que a história do povo que viveu nessas terras, mas ecova uma conexão religiosa. “A nossa história é forte, e o principal das caretas não é a máscara, como também do Nego Fugido, o principal são as palhas, que servem de varredura, para fazer limpeza. A nossa manifestação não é só para quem está vivo, no caso espiritual, convoca nosso povo sofrido dos engenhos para festejar também”, acrescentou.>
Em posse das máscaras, com vestes volumosas por conta das saias de folhas de bananeira secas, as Caretas percorreram as ruas de Acupe levando graça e muitos sustos para quem esperava da janela de casa a tradicional passagem. Crianças corriam e choravam, outras perturbavam as caretas, mas não havia quem não participasse de alguma forma da manifestação. >
“Quando eu era pequena, corria das Caretas, porque a gente tinha medo. Quando eu cheguei aqui em Acupe, há 48 anos, era coisa nova. A primeira vez que vi, corri, porque que eu não sabia o que era, depois fui conhecendo”, relembra a professora Jailza Silva, de 56 anos, da porta de casa. “É a nossa história, é a nossa cultura que, graças a Deus, continua se perpetuando com os mais novos”, celebrou. >
Estavam fantasiados desde o seu Lilinho, de 53 anos, ao pequeno Andrei, de apenas 4, todos. “A cultura da gente começa dia 2 de julho e termina no dia dos pais. A gente tem que apresentar a nossa cultura acupense”, argumenta a mãe do mais novo, a marisqueira Jamile Oliveira, de 35 anos, que o leva para o desfile das caretas ano após ano.>