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Carolina Cerqueira
Publicado em 25 de fevereiro de 2024 às 07:00
Um aniversário sem festa, bolo e nem parabéns. Neste sábado (24), a guerra entre Rússia e Ucrânia completa dois anos e Olha Syvash não tem o que comemorar. A ucraniana de 65 anos iniciou a sua jornada de fuga do país, sozinha, no dia 3 de março de 2022 e chegou a Salvador exatos 10 dias depois. Foi preciso caminhar, pegar um trem, um ônibus e dois aviões para finalmente abandonar o medo de morrer a qualquer instante. Mas a tensão, mesmo 2 anos depois, a persegue; veio na única pequena mala de mão que conseguiu trazer, ocupando o lugar que seria das boas lembranças de sua cidade, Kharkiv, a 30km da fronteira com a Rússia.
Com a alma dividida entre os dois países, Olha acompanha pela internet as notícias dos jornais locais sobre os ataques ainda constantes. O prédio da faculdade onde estudou foi destruído e ela não tem notícias do estado do seu apartamento. A cada dia, o cenário pode não ser mais o mesmo. A torcida é pelo fim da guerra, mas a ucraniana teme a dor que ver sua cidade destruída causaria. Agora, luta para não viver pensando num futuro incerto e se apaixona cada vez mais por Salvador, cidade que traz no nome o poder de acolhimento.
Em relato ao CORREIO, a Olha detalhou o início da guerra, sua jornada de fuga e sua vivência em Salvador. A fala, feita na sua língua nativa (mistura de russo com ucraniano), foi traduzida voluntariamente por Volha Yermalayeva Franco. Confira o relato:
Eram cinco da manhã quando ouvi barulhos muito fortes, mas não achei que seriam explosões de bombas. Talvez eu não quisesse acreditar que era a guerra começando. Sabia das tropas russas posicionadas nas fronteiras, mas como acreditar que, no século XXI, no meio da Europa, eu viveria algo assim? Então comecei a me arrumar para o trabalho, mas meu chefe mandou uma mensagem avisando que ninguém deveria ir.
Fui atrás de notícias na imprensa. As lojas pararam de funcionar e colocaram tapumes nas vitrines; o transporte parou. O medo era generalizado e então as farmácias e os mercados passaram a acumular longas filas. Eu passei a dormir no corredor do meu apartamento, longe das janelas, com medo de estilhaços de vidro.
A situação piorava com os russos passando a explodir aeroportos e áreas residenciais. Os barulhos dos mísseis ficavam cada vez mais próximos. Um dia, estava na fila do lado de fora de um supermercado enquanto aviões que passavam lançavam bombas a 500 metros de onde eu estava. Lembro de desejar muito que chegasse a minha vez de entrar no mercado porque eu tinha a falsa sensação de que lá dentro estaria protegida. A partir daquele dia, comecei a passar as noites numa estação de metrô, que estava servindo de abrigo, e a pensar em como sair do país.
Eu não tinha mais parentes próximos e minha filha, Anastasiia, estava morando e trabalhando em Salvador desde 2020. No dia 8 de março, decidi fugir para encontrá-la. Ela estava em pânico, mas estávamos o tempo todo nos comunicando pelo celular. Eu arrumei uma pequena mala de mão com algumas roupas, documentos e comida para três dias.
Caminhei sozinha por cerca de cinco horas até chegar à estação de trem. Havia muita gente e homens armados orientavam os civis. Só podiam embarcar mulheres, crianças e homens idosos. Fui até Lviv, cidade do outro lado do país, de trem, e depois até Varsóvia, na Polônia, de ônibus. Passei três dias na casa de amigos porque eu precisava de tempo para conseguir comprar a passagem para o Brasil. Peguei um voo para Lisboa e, depois, para Salvador, chegando no dia 13 de março de 2022.
Quando cheguei, achava que a guerra não ia demorar muito tempo; ainda pensava no dia que voltaria para casa. O Brasil é muito diferente da Ucrânia e minha vida deu uma volta de 180 graus. Eu imaginava visitar minha filha aqui, mas não estando fugida de uma guerra. Salvador é uma cidade muito grande e, até hoje, é difícil me situar. Sem falar do idioma, que não domino e preciso de ajuda.
Lá eu trabalhava como arquiteta e, em Salvador, passei a ajudar minha filha no trabalho, cuidar da casa, cuidar de dois gatos, cuidar de plantas e ir à praia – adoro a Ribeira. Mas gosto de morar aqui. A comida local me surpreendeu e adoro pititinga e moqueca de camarão. As pessoas, muito receptivas, são bem diferentes do que eu estava acostumada. Os europeus são mais contidos, calmos, falam baixo, gesticulam pouco e não abraçam qualquer um. Aqui as pessoas também vestem roupas mais coloridas e brilhantes.
Tenho um grupo de ucranianos espalhados pelo Brasil que se reúne virtualmente para aprender português. Converso com alguns amigos que fugiram da Ucrânia e estão espalhados pelo mundo. Em Salvador, conheci a belarussa Volha Yermalayeva Franco, que se tornou uma amiga e, com ela, eu e minha filha fazemos ações para que a guerra não seja esquecida e para ajudar os ucranianos.
A tensão ainda não me abandonou. Tenho medo quanto à relação do Brasil com a Rússia e a Kharkiv ainda sofre ataques constantes. Não sei como está o estado do meu apartamento e da minha rua. Eu soube que o prédio da faculdade onde estudei foi destruído e o centro da cidade foi devastado. Eu ainda tenho a imagem da minha cidade como ela era originalmente porque, quando eu saí, a guerra ainda estava muito no início. Depois, foram muitos outros bombardeios, muito mais destruição. Não consigo imaginar o quão doloroso seria voltar e ver tudo destruído pessoalmente.
Ainda há momentos que acho que isso tudo não está acontecendo comigo; parece que eu estou dormindo, tendo um pesadelo. Sinto a minha alma ainda dividida entre os dois países; metade de mim ainda está lá. Mas estou lutando contra isso, tentando não viver mais pensando em quando poderei voltar para lá. Agora estou tentando me acostumar com a ideia de que essa é a minha nova casa.