Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Maysa Polcri
Publicado em 20 de novembro de 2023 às 07:08
Nas salas onde tinha aulas do curso de Direito na Universidade de Feira de Santana (Uefs), Luciana Paim, 42, sempre foi uma das poucas mulheres negras. A realidade era a mesma enfrentada em escritórios de advocacia e no Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), onde trabalhou. Quando decidiu seguir o caminho da magistratura, sabia que seria exceção entre os colegas brancos. O que poderia servir de obstáculo, no entanto, virou motivação e, hoje, a juíza inspira novos talentos a lutarem pelos seus sonhos. >
Até que a Luciana Paim assumisse o posto de juíza titular da Comarca de Sobradinho, na região do Vale do São Francisco, precisou enfrentar uma jornada cheia de altos e baixos. “Como mulher preta, eu sempre entendi que meu caminho seria mais longo do que o da maioria das pessoas. Nós não temos as mesmas oportunidades e, muitas vezes, nem conseguimos chegar onde sonhamos”, diz. >
Ao longo de dez anos, Luciana perdeu as contas de quantos lugares abriu um livro para estudar. Dos intervalos do almoço quando trabalhava como assessora de juiz no TJ-BA até o deslocamento dentro dos vagões do metrô: qualquer circunstância virava oportunidade para ficar mais perto do objetivo de passar no concurso. Conciliar a jornada de oito horas diárias com os estudos ficou ainda mais difícil em 2018, quando descobriu que estava grávida do primeiro filho. >
“O concurso de magistratura exige alta performance e eu concorria com pessoas que, diferente de mim, não precisavam trabalhar para se manter”, relembra. “Meu filho desenvolveu um processo alérgico muito grave e eu passava várias noites acordada para cuidar dele e, ao mesmo tempo, estudar”, completa. Para isso, ela contou com a parceria do marido, que é engenheiro elétrico. >
Luciana Paim tomou posse em 2021 e trabalhou em Xique-Xique antes de assumir a Comarca de Sobradinho. Mesmo tendo alcançado a posição que sonhou desde os primeiros anos da faculdade, a juíza enfrenta cotidianamente o racismo, mesmo que velado. É como se ela precisasse se esforçar mais do que os colegas brancos para mostrar que é uma boa profissional. “Nós, mulheres pretas, somos colocadas mais à prova em qualquer circustância e aqui não é diferente”, afirma.>
A necessidade de comprovação é acompanhada da surpresa, afinal, é comum que pessoas não a reconheçam como juíza titular. “Em vários momentos eu já percebi a expressão da surpresa das pessoas ao entrarem no gabinete e me veem. Chegam a perguntar ‘onde está o juiz’ e eu digo que sou eu”, fala. >
Apesar de a maior parte da população brasileira ser feminina (51,4%) e formada por pretos e pardos (56%), o judiciário está longe de representar essa parcela da sociedade. Os magistrados e magistradas negros formam apenas 1,7% do total de juízes do país, de acordo com o Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e divulgado em setembro deste ano. >
“Ao longo da minha trajetória eu não vi representatividade. Me deparei com pouquíssimos juízes pretos no judiciário da Bahia nos locais onde trabalhei. Também eram poucos chefes negros em escritórios e na faculdade”, diz. No que depender de Luciana, os primeiros passos para mudar essa realidade já foram traçados. >
“Meu papel hoje, mais do que me debruçar sobre processos, é mostrar que o judiciário pode ser diferente e acessível para outras pessoas como eu. É preciso dar novos caminhos e oportunidades para que jovens negros possam sonhar”, afirma. O trabalho dela começa dentro de casa, onde já é inspiração para o marido, um homem negro retinto, e para os dois filhos de 5 anos e 1 ano.>