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Carolina Cerqueira
Publicado em 17 de março de 2024 às 05:00
O processo seletivo anunciado no site parecia tentador. Receberia 500 euros (cerca de R$2.700) por mês para aprender o novo idioma e, já na Alemanha, ganharia um salário de 2.800 euros (cerca de R$15 mil). Sendo Pessoa Jurídica (PJ) no Brasil e recebendo bem menos do que esse valor, a enfermeira Adrielle Morais, de 23 anos, não pensou duas vezes antes de se inscrever. Até o final de 2024, ela espera ser a nova moradora da cidade de Munique e se juntar aos milhares de enfermeiros estrangeiros recrutados para suprir a demanda dos países desenvolvidos. >
“Aqui é mais difícil para os recém-formados conseguirem emprego no mercado de trabalho, ainda mais com bons salários. Mas lá fora eles nem exigem experiência”, conta a paulista. É em São Paulo onde acontece a maior parte dos recrutamentos, mas basta uma busca no LinkedIn para enfermeiros de qualquer estado encontrarem uma oportunidade.>
Esse foi o caso da baiana Letícia Pereira, de 35 anos, que trabalha como enfermeira na região de Puglia, na Itália, país onde chegou em 2022. Ela conta que a onda começou durante a pandemia de covid-19, quando o governo italiano permitiu que profissionais de saúde entrassem no país para trabalhar sem o reconhecimento prévio do Ministério da Saúde. O decreto será válido até dezembro de 2025, mas pode ser prorrogado. A demanda por enfermeiros continua. >
“A população italiana não valoriza o trabalho em saúde, eles vão mais para engenharia. Vejo que as pessoas não seguem essa área porque não querem trabalhar nos finais de semana e feriados, e nem fazer hora extra e plantão. É muita sobrecarga de trabalho, tem muito banco de hora que nunca vira folga e nem remuneração. Outro dia, um jornal local divulgou que a região de Puglia tem um déficit de seis mil enfermeiros e a Federação Nacional da Ordem dos Enfermeiros falou em uma falta de 63 mil para toda a Itália”, conta Letícia.>
A maior demanda está nas casas de repouso. É para elas que os estrangeiros vão assim que chegam ao país. “Os enfermeiros daqui preferem hospitais; quem trabalha em casa de repouso é visto como um profissional ruim, que não tem qualificação”, revela a baiana, que trabalha numa casa de repouso com enfermeiros brasileiros e romenos.>
A demanda>
O mestre em Direito, Governança e Políticas Públicas e especialista em mercado de trabalho Augusto Cruz afirma que a tendência é que o envelhecimento da população abra uma janela de oportunidades profissionais no mundo todo e que alguns países já estão a alguns passos a mais do que outros.>
“As pirâmides etárias europeias já estão há algum tempo com a base estreita, já nem podemos mais chamar de pirâmides. A Coreia do Sul também vive uma situação de baixíssima taxa de natalidade, com o governo estimulando as pessoas a terem filhos. A pirâmide brasileira está seguindo o caminho, vivendo um processo de estreitamento da base, com a diminuição dos jovens e o aumento da população mais velha”, analisa.>
“Com esse cenário, médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, cuidadores e outros profissionais da área serão mais demandados. Essa é uma grande tendência para os próximos 10 a 20 anos. Se a gente aliar isso ao maior interesse dos jovens pelas profissões de tecnologia, com internet das coisas e Inteligência Artificial - que parecem ser as profissões do momento -, teremos um cenário bastante complicado no mundo todo”, acrescenta Cruz.>
A oportunidade>
Letícia conta que trabalhou no Brasil por 11 anos como técnica de enfermagem por conta da dificuldade de encontrar vagas para enfermeiros. Chegou uma hora em que as contas não estavam fechando. “Eu não conseguia pagar meus financiamentos, ficava apertada para fazer mercado, as dívidas iam aumentando e o salário estava congelado há mais de 10 anos”, lembra.>
Ela diz que não é rica na Itália, mas vive bem, tem assistência à saúde, carro, casa e ainda consegue ter momentos de lazer e fazer viagens, o que não conseguia no Brasil. “Não penso em voltar. Eu estive em Salvador em novembro de 2023 para ver a família, voltei para cá chorando e sinto saudades, mas estou consciente de que essa é a escolha certa”, completa.>
Em 2022, uma pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) mostrou que 54% dos enfermeiros brasileiros recebiam abaixo do piso de R$ 4.750,00. A pesquisa mais recente do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), intitulada “Perfil da Enfermagem”, foi realizada em 2016 e atestou que, no setor público, apenas 21,15% dos enfermeiros recebiam mais de R$4.000. No setor privado, 13,5% e, no setor filantrópico, 12,6%.>
O coordenador do colegiado do curso de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Fransley Lima, conta que a demanda dos ex-alunos pelo reconhecimento do diploma traduzido em diferentes idiomas tem crescido. “Já fizemos para a Itália, Alemanha, Inglaterra, Canadá e Estados Unidos. Em 2023, foram 11 pessoas querendo o reconhecimento. Em 2024, já tivemos duas pessoas para os Estado Unidos”, diz.>
“Nossa participação enquanto universidade, conforme as diretrizes do Ministério da Educação (MEC), é receber o diploma traduzido, fazer a conferência e atestar. Também recebemos um formulário das empresas mediadoras de enfermeiros países recrutadores, que preenchemos com as disciplinas e atividades extracurriculares que o estudante cursou, colocando a carga-horária teórica e prática. As empresas costumam ser bem criteriosas, exigem os carimbos e as assinaturas, tanto do colegiado quanto da reitoria”, explica o coordenador.>
O recrutamento>
A empresa na qual Letícia chegou para trabalhar em 2022 pagou sua passagem aérea de ida, um hotel para que a ela pudesse fazer a quarentena por conta da covid-19 e ainda ofereceu moradia pelo tempo que ela precisasse (que foi de nove meses) até conseguir arcar com um local por conta própria.>
Foi dessa “generosidade” que o enfermeiro também baiano Vinicius Chagas, de 35 anos, desconfiou. Ele encontrou através do Instagram uma empresa que fazia a ponte entre instituições de saúde alemãs e enfermeiros brasileiros. Durante o contato, Vinicius compartilhou suas preocupações quanto aos custos e a empresa garantiu arcar com tudo, inclusive um curso de alemão.>
“Quando o milagre é grande, o santo desconfia. Logo depois, o papo já mudou e eles disseram que iriam cobrir, mas que eu teria que pagar depois. Fui querer saber mais sobre previdência social, seguros e outros direitos e vi que não teria nada disso. Ainda por cima, eu ficaria entre um e dois anos em avaliação com um salário que não chegaria a mil euros. Depois, poderia chegar perto dos dois mil”, alerta Vinicius. >
Mesmo imaginando um cenário não tão promissor no Brasil, o enfermeiro não achou que valia a pena apostar no desconhecido. “As pessoas se iludem muito com a ida ao exterior. Você vai ganhar em euro, mas vai gastar em euro e são países em que o custo de vida é alto. Só de moradia eu pagaria uns 900 euros e iria viver na ponta do lápis. Eles procuram a gente aqui por um motivo: somos muito capacitados e muitos de nós estão ávidos por uma promessa de vida melhor no exterior, aceitando salários que os profissionais locais não aceitariam”, analisa.>
Antes de decidir procurar um emprego na Itália por conta própria, Letícia também quase caiu numa furada. Ela fazia parte de um grupo de WhatsApp com cerca de cem brasileiros comandado por um paulista que cobrava para dar informações sobre os processos de recrutamento e documentação. Ele fazia a ponte entre os enfermeiros e as empresas. Se a pessoa conseguisse o emprego, ele cobrava até mil euros pelo serviço.>
“O cara nem falava italiano e eu, que pesquisava bastante sobre tudo, comecei a ver que sabia mais do que ele. Desconfiei e fui fazer o meu processo sozinha. Quando fui contratada e a empresa ainda me pediu indicações, eu avisei lá no grupo, disse que quem quisesse podia me procurar e saí do grupo. Ele ficou bem irritado comigo; foi tudo muito esquisito”, lembra Letícia.>
O acordo com o governo alemão>
Como forma de oficializar o processo e evitar que enfermeiros acabassem caindo em golpes ou que fossem contratados sem garantia de direitos, o governo alemão fez um acordo de cooperação com o Cofen em 2022, através da sua Agência Federal de Empregos. O acordo prevê que as condições de trabalho dos brasileiros seguirão as regras da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e que os custos do processo serão pagos pelo empregador.>
Para participar, o profissional deve ter concluído o curso de graduação em Enfermagem em uma instituição de ensino reconhecida pelo MEC e possuir inscrição profissional no Conselho Regional ao qual estiver vinculado. Os trabalhadores estariam sujeitos ao seguro obrigatório no sistema de previdência social alemão, com direito a seguro de saúde, pensão, seguro contra acidentes e seguro desemprego.>
Ao ir para Alemanha, os candidatos são inicialmente colocados na função de assistente de cuidados (com salário de até 2.600 euros), que desempenham até que a equivalência da qualificação profissional seja reconhecida ou até que seja concedida a autorização para o exercício das atividades profissionais de enfermagem. Após o reconhecimento do diploma, o salário inicial passa a ser de 2.800 euros, como informa o Cofen.>
“Com o convênio, o Cofen e o governo alemão buscam trazer segurança aos profissionais que desejam imigrar e evitar situações exploratórias, visando garantir condições seguras para que se estabeleçam de forma legal e possam atender aos requisitos exigidos para atuarem no país, como nível adequado do idioma e aprovação em exame probatório”, diz o Conselho.>
É através desse acordo que a enfermeira paulista Adrielle Morais, citada no início da reportagem, irá para a Alemanha. Ela foi selecionada no processo seletivo, que tem uma etapa de análise de currículo e outra de entrevista. Agora, ela está cursando alemão no Goethe Institut, juntamente com os outros selecionados, enquanto recebe uma bolsa de 500 euros mensais para se dedicar aos estudos com exclusividade.>
“Estou animada; tenho uma expectativa boa de que vai dar tudo certo. Sei que será difícil e vai demandar muito estudo e dedicação, mas vou conhecer um lugar novo, com melhores condições e uma vida nova, então isso é bem animador”, divide ela. >
O Goethe tem atuação nacional e também uma sede em Salvador. A unidade baiana está envolvida no acordo. O CORREIO conversou em dezembro de 2023 com o diretor de cursos, Frank Emmerich, que confirmou a informação, mas disse não ter disponibilidade para entrevista porque estava coordenando o processo seletivo que estava em andamento na época. Procurado novamente após a finalização, o Goethe afirmou que “devido a uma questão administrativa interna”, não poderia “divulgar amplamente o projeto”.>
Procurado pelo CORREIO, o Cofen disse que o acordo com o governo alemão está suspenso desde novembro de 2023 e que novas seleções não estão sendo feitas. Já foram sete processos seletivos desde o início do acordo e cem profissionais de enfermagem brasileiros já estão atuando na Alemanha por meio da parceria; outros 150, incluindo Adrielle, estão em processo de qualificação no idioma.>
A suspensão do acordo veio após denúncias de possíveis pagamentos de salários abaixo do piso e descumprimento de direitos trabalhistas. A preocupação do Sindicato dos Enfermeiros do Estado da Bahia (Seeb) e da Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE) está na ausência de participação do governo brasileiro. O assessor legislativo do Cofen, Alberto Cabral, justifica.>
“Nós fomos procurados pelo governo alemão porque o Ministério do Trabalho e o Ministério da Saúde brasileiros, na época, que estavam sob o governo anterior, assim recomendaram após serem procurados primeiro. Agora, no novo governo, tivemos conhecimento de que o Ministério do Trabalho brasileiro encaminhou um ofício ao governo alemão questionando o acordo e então procuramos o órgão para prestar esclarecimentos. Uma reunião está marcada para a próxima segunda-feira, dia 18, e o Cofen está aberto para seguir ou não com o acordo”, diz Cabral.>
“Uma coisa é o recrutamento feito por empresas privadas sem o intermédio do governo alemão e, por esse, não podemos responder. Mas, dentro do acordo, todas as regras são cumpridas e todos os direitos garantidos. No final de 2023, o Cofen esteve na Alemanha a convite do governo local para conhecer as condições de trabalho dos enfermeiros que foram para lá recrutados através do acordo. Conhecemos cerca de 30 profissionais, visitamos as instituições de saúde e não encontramos nenhuma irregularidade ou precariedade”, completa o porta-voz.>
A presidente do Seeb, Alessandra Gadelha, vê o movimento como uma “evasão de talentos que poderiam estar fortalecendo o SUS” e se preocupa com o cenário futuro, acreditando que a escassez de profissionais vivida lá fora também chegará ao Brasil. “Já temos uma falta em locais mais remotos, em muitas cidades do interior. Talvez a questão não seja um cenário de desemprego alto aqui, mas, sim, uma má distribuição de profissionais”, coloca.>
A presidente da FNE, Solange Caetano, diz que a participação do governo brasileiro e dos sindicatos no movimento de recrutamento é indispensável, mas também lamenta a evasão de talentos. “A nossa enfermagem é muito bem vista fora do país. É um profissional de excelência em formação técnica e, lá fora, muitos países, como a Alemanha, nem exigem o ensino superior para o enfermeiro”, destaca.>
A FNE disse que já realizou três reuniões com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), apresentando uma proposta de revisão do acordo, e que agora aguarda uma reunião de retorno. O Seeb disse que solicitou reunião com o MTE, mas que, até o momento, não foi atendido. Um encontro chegou a ser marcado para o mês de janeiro de 2024, mas foi suspenso e ainda não tem nova data para acontecer. O MTE e a Embaixada da Alemanha no Brasil foram procurados pelo CORREIO para informar sobre as providências que estão sendo tomadas quanto aos recrutamentos de brasileiros para diferentes países do mundo e possíveis irregularidades, mas não responderam ao contato.>